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As Boas Maneiras: Por que o Oscar precisa descobrir o lobisomem brasileiro

Roberto Sadovski

04/09/2018 00h54

Todo ano é a mesma coisa. Ao mesmo tempo em que os grandes festivais internacionais começam a desenhar como pode ser o perfil da festa do Oscar do ano seguinte, um comitê do Ministério da Cultura no Brasil começa a analisar qual seria o filme selecionado para representar nosso cinema na festa da Academia. Uma lista com 22 títulos foi revelada como as produções que estão aguardando o crivo de nossos especialistas. É uma compilação tão eclética quanto sem personalidade, englobando textos políticos, comédias ligeiras e dramas grandiosos. Tem filmes muito bons (O Animal Cordial, ainda em cartaz, é interessantíssimo), muito ruins (certeza que alguém perdeu o rolo com o terceiro ato de Aos Teus Olhos) e os que não valem o dinheiro do Uber (Não Devore Meu Coração é uma vergonha). Mas um único filme entre esses 22 tem moral para chegar no Dolby Theater em 24 de fevereiro de 2019 concorrendo ao Oscar de melhor filme estrangeiro: As Boas Maneiras.

Eu sou o primeiro a dizer que o filme de terror de Marco Dutra e Juliana Rojas não é perfeito. É um pouco longo demais, não resolve muito bem a mudança de tom que vira a narrativa ao avesso no meio do segundo ato e se beneficiaria de mais sutileza em seu teor político-social. Mas As Boas Maneiras traz um elemento que raríssimas produções brasileiras possuem: uma visão clara do que quer ser, emoldurada com firmeza na direção e a combinação de elementos (direção de arte, figurino, montagem) que faz o cinema ser cinema. Sem falar que é seguro de seu gênero: é cinema de terror que, num Brasil meio metido a besta, em que boa parte da turma do cinema quer fazer "arte" e enxerga o cinema de gênero como algo menor, assume sua violência, seu nonsense, seu charme kitsch e sua tradição enraizada em nossa cultura. Porque poucas coisas são tão características ao nosso folclore quanto as histórias de lobisomem.

Marjorie Estiano e Isabél Zuaa em momento tranquilo antes do caos

As Boas Maneiras é ambientado em uma cidade fictícia, dividida em abastados e proletários por um rio que risca o lugar de ponta a ponta. Ana (Marjorie Estiano) é rica, vive solitária em um apartamento imponente e conta seus dias entre dois pólos: uma gravidez complicada e a absoluta solidão. Ela contrata a enfermeira Clara (Isabél Zuaa) para ser babá do filho que está a caminho, mas esta logo percebe que é a patroa que precisa de colo, de atenção e de alguém para aplacar a sensação de pavor que aos poucos infesta cada fragmento de sua vida. As atrizes e a direção de Dutra e Rojas seguram o ímpeto "social" do roteiro (escrito pelos próprios diretores), e a trama mergulha sem hesitar num jogo de sangue e sexualidade – casamento que não pode faltar a um bom filme de terror. Sem entregar as minúcias – e são elas que fazem de As Boas Maneiras uma experiência incrível ao se tornar um conto de fadas distorcido -, o filme chega a seu ponto de virada com o nascimento da criança e uma mudança radical de rumo dramático.

É nessa segunda parte que Dutra e Rojas mostram o quanto são corajosos como diretores e como eles tem verdadeira paixão pelo gênero que aqui abraçam. Clara e o garoto, agora com 10 anos e interpretado por Miguel Lobo (sério!), precisam entender uma rotina para proteger a verdadeira natureza do menino, revelada nas noites de lua cheia. É quando As Boas Maneiras entrega sua própria interpretação do mito do lobisomem, combinando a evolução física da criatura com a curiosidade crescente de uma criança que ainda não entende sua herança. Tudo embalado pela devoção de uma mãe postiça que lhe envolve com dois tipos diferentes de amor: ela enxerga nele a lembrança de alguém que, por um momento breve, mudou sua vida; e o óbvio sentimento maternal, de proteção, mesmo que esse cuidado possa ser mal interpretado por uma mente infantil. Sem falar que o surgimento da fera, criada com uma mistura de efeitos práticos e digitais, ajuda a mergulhar no universo hiper realista criado pela dupla de cineastas.

O horizonte estilizado e hiper realista de As Boas Maneiras

Como resultado dessa mistura, As Boas Maneiras termina com muita, mas muita personalidade. A premiação do Oscar, claro, mira em qualidade. Mas é também um espaço para cada país mostrar a que veio, revelar um pouco de suas origens, trazer uma linguagem que dialoga com suas tradições, ao mesmo tempo em que apresenta uma história universal. Nos últimos anos temos visto uma seleção sem a menor chance de emplacar no Oscar ser indicada pelo MinC. Filmes de pouco impacto, por vezes tecnicamente deficientes, que confundem a defesa de alguma teoria sem fundamento com o que realmente importa no cinema: contar uma história. As Boas Maneiras é o mais brasileiro entre os selecionados para concorrer à indicação para o Oscar, ao mesmo tempo que trafega com desenvoltura em qualquer país, para qualquer público. Como o filme tem passeado por festivais pelo mundo há mais de um ano, fica mais fácil exibir suas credenciais sem atrelar sua carreira a demonstrações políticas ou partidarismo vazio.

O cinema, obviamente, não precisa de nada disso. Todos os elementos que caraterizam nossa arte e nossa história estão encapsulados em As Boas Maneiras em uma história forte em metáforas, rica em silêncios, graficamente exuberante e certa do caminho que quer seguir. Talvez sua escolha mostre que o caminho para o cinema brasileiro conquistar essa assinatura forte além de nossas fronteiras seja abraçar o que temos de lúdico, de espetacular e de extraordinário. Ter um filme como As Boas Maneiras mostrando a nossa cara para o mundo seria o ponto de partida ideal para apresentar uma nova geração de criadores mais preocupada em fazer cinema do que em teorizar cinema. Melhor ainda que seja com este conto de fadas feminino que não tem medo de assumir o que é: um baita filme de terror. Em alguns dias, precisamente em 11 de setembro, o escolhido será revelado. Como diria o grande Chico Barney, voltamos a qualquer momento com novas informações.

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Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.