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Incompleto, novo Black Mirror é uma experiência em interação que não decola

Roberto Sadovski

29/12/2018 02h01

A Netflix é um personagem em Bandersnatch, novo episódio da antologia britânica Black Mirror que tenta reinventar seu próprio jogo. É um momento de metalinguagem que encerra, convenhamos, de maneira constrangedora um dos segmentos do longa, escrito por Charlie Brooker, criador da série, com direção de David Slade. Apontar que é "um dos segmentos" não é figura de linguagem: o filme é construído em recortes, montados com a ajuda de quem segura o controle remoto do lado de cá. O conceito parece simples, e sua execução é redondinha. A inspiração são livros no estilo Escolha a Sua Aventura ou E Agora Você Decide, publicados no Brasil pela Ediouro em meados dos anos 80. A premissa era um barato: no rodapé de algumas páginas, sempre em um momento climático da história, o leitor tinha duas opções para escolher o rumo do protagonista e seguir até a página determinada. Um livro se tornava, então, vários.

Bandersnatch segue essa mesma regra básica, usando a tecnologia do streaming para traduzi-la para a TV – provavelmente só a Netflix seria capaz de encarar uma experiência assim hoje, e a bandeira Black Mirror é absolutamente perfeita para a história: se a antologia de Brooker mostra futuros distópicos em que somos de alguma forma controlados pela tecnologia, a coisa aqui é invertida, com nossas mãos guiando a trama. Em 1984, Stefan Butler (Fionn Whitehead, de Dunkirk) é um gênio de 19 anos que tenta transformar um livro interativo em um jogo para computador. Ele apresenta sua ideia a um investidor (Asim Chaudhry), que já publica games do já famoso programador Colin Ritman – Will Poulter, propositalmente fora de sintonia com o resto do elenco, e único que parece entender a natureza da "experiência". Stepan, porém, não tem a cabeça 100 por cento no lugar, já que é atormentado pelo trauma da morte da sua mãe e pela presença sufocante do pai superprotetor. A gente sabe que seus passarinhos não estão na gaiola por suas sessões com uma terapeuta amigável (Alice Lowe).

Stepan Butler (Fionn Whitehead) em momento de criação

A ideia de controlar o rumo da trama começa super bacana, dando mesmo a impressão de Bandersnatch ser uma versão dos livrinhos já clássicos. Aos poucos, entretanto, percebe-se que não só controlamos a história, como esse poder quase divino faz com que o público torne-se parte integral das ideias discutidas no roteiro. E é aí que a coisa começa a ficar cansativa. A novidade em escolher caminhos diferentes logo passa, e toda a metalinguagem torna-se de interessante a meio óbvia. Pior: algumas das escolhas não são realmente escolhas, já que o resultado é manipulado pelo texto para seguir o mesmo caminho. Por fim, existe meia dúzia de finais que amarram direitinho as diversas tramas, mesmo que causem zero impacto narrativo, chegando basicamente em lugar nenhum. O maior inimigo de Bandersnatch, portanto, é a própria expectativa construída em torno da marca Black Mirror. Em quatro temporadas brilhantes, a série conseguiu misturar suspense, ideias sofisticadas, discussões filosóficas e até uma dose de humor em episódios que vão do intrigante e nostálgico (como o incisivo "U.S.S. Callister", que cutuca a ferida dos nerd tóxicos na cultura pop) ao absolutamente sublime ("San Junipero" é um dos grandes momentos da TV do século 21). O novo episódio, que em teoria suava inovador e visionário, termina como uma brincadeira sem muito estofo.

E o pecado não poderia ser outro: a história é pouco envolvente. É compreensível que, ao usar um conceito interativo emprestado de uma série literária nostálgica (que teve um revival justamente em games para computador nos anos 90), Brooker não tenha resistido à tentação de escrever uma história sobre esse mesmo conceito. No meio, ele até ensaia uma discussão filosófica sobre livre arbítrio e a natureza de nossa própria existência. Mas a engrenagem fragmentada da narrativa impede que qualquer um dos personagens ganhe contornos mais definidos – e, por consequência, uma conexão emocional palpável. O trauma de Stepan nunca é abordado com a densidade necessária, assim como a materialização da teoria conspiratória que prega o monitoramento e doutrinação como experimento social. A história não obedece aos personagens, e sim à arquitetura que permite que a gente decida seu rumo – é o formato dominando o conteúdo, e isso sempre é uma bola fora.

Errr…. então tá, né….

Ainda assim, a Netflix merece aplausos por ao menos experimentar com suas ferramentas para descobrir novas formas de entretenimento audiovisual. O chamariz interativo pode ser lapidado como uma nova forma de contar histórias – desde que essas histórias sejam envolventes e irresistíveis, e não um acessório para testar um brinquedo novo. O elenco, eficiente como sempre, abraça a causa e deixa até os momentos mais absurdos (um suicídio aqui, um desmembramento acolá) palatáveis. Mas nem Laurence Olivier salvaria a "cena de ação" que transforma a Netflix em personagem: é um momento de soberba que tenta colocar Black Mirror num pedestal acima de filmes ou séries, seguindo seu raciocínio, "apelativos". Com um filme assinado por Michael Bay chegando à plataforma em 2019, talvez seja melhor olhar o próprio umbigo com mais cuidado.

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Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.