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Nova série Watchmen não se parece nada com Watchmen... o que é ótimo!

Roberto Sadovski

11/05/2019 04h11

O trailer de Watchmen, série que a HBO estreia no segundo semestre, traz muitas perguntas e zero respostas. Até por não parecer nem um pouco com Watchmen – seja a série que mudou a cara dos quadrinhos de super-herói nos anos 80, seja o filme dirigido por Zack Snyder uma década atrás. Sob o comando de Damon Lindelof, cérebro por trás de Lost e The Leftovers, a nova série traz os mesmos temas da HQ original de Alan Moore e Dave Gibbons, continuando a história com elementos familiares e algumas surpresas. "Não é nossa intenção adaptar, recriar, reproduzir ou reiniciar as doze edições criadas por Moore e Gibbons", disse Lindelof em carta aberta ano passado. "A intenção é remixar, é usar os eventos como base, a série original é nosso Velho Testamento, e o Novo Testamento não apagou nada que o antecedeu." Ok, então é uma continuação. O que parece ser a melhor opção.

Jeremy Irons, talvez o rosto mais conhecido do elenco, surge em posição de meditação, mais ou menos como o superpoderoso Dr. Manhattan dos quadrinhos originais – mas o ator interpreta (ao menos até onde sabemos) o único personagem conhecido de Watchmen, o gênio bilionário Ozymandias. Agora décadas mais velho, ele foi responsável por salvar o mundo do desastre nuclear quando causou uma tragédia de proporções tão bíblicas que matou metade da cidade de Nova York e fez o mundo se unir ante uma ameaça comum: uma invasão alienígena, orquestrada secretamente por Ozymandias. Tudo isso, segundo Lindelof, é cânone na série e pertence ao passado – assim como a morte do Comediante, o romance entre Dan Dreiberg e Laurie Jupiter (os heróis Niteowl e Silk Spectre) e a decisão do Dr. Manhattan em criar um novo universo do zero, logo após pulverizar o radical Rorschach. No teaser, é revelada a protagonista dessa versão ainda mais futurista: Regina King (vencedora do Oscar por Se a Rua Beale Falasse), que subverte seu traje policial em um traje de combatente do crime ilegal, sugerindo uma nova geração de vigilantes em um mundo mais uma vez à beira do abismo.

Rorschach em Watchmen, a série que mudou os quadrinhos para sempre

Watchmen teve uma trajetória atribulada ao migrar dos quadrinhos para outras mídias. Desde sua publicação em 1986, executivos em Hollywood flertaram com a ideia de uma adaptação para o cinema – especialmente depois do sucesso absurdo de Batman em 1989 e do boom dos quadrinhos adultos no mercado mainstream americano na mesma época. O produtor Lawrence Gordon comprou os direitos para a adaptação e convocou o roteirista Sam Hamm, que escreveu a versão do Cavaleiro das Trevas para Tim Burton, para traduzir 339 páginas de quadrinhos (com nove painéis em cada página) em um roteiro de 128 páginas. Hamm alterou o final, cortou uma pá de personagens, e foi essa versão que parou nas mãos do diretor Terry Gilliam. Depois de meses retrabalhando o roteiro, ele concluiu que as doze edições traziam uma história muito complexa, estruturada de maneira que só fazia sentido como um gibi. Com a saida de Gilliam, o projeto passou por quatro estúdios e mais um punhado de diretores e roteiristas, entre eles David Hayter e Darren Aronofsky.

Foi com o diretor Paul Greengrass que Watchmen teve chance de quase sair do papel para um lançamento em 2006. Eu tive a chance de visitar o escritório da produção que Greengrass armou em Los Angeles na época, quando ele explicou que sua versão seria uma visão contemporânea da história, lidando com terrorismo moderno e deixando de lado algumas soluções apresentadas em roteiros anteriores – um deles transformava o final em um paradoxo temporal, com o mundo dos quadrinhos, povoado por vigilantes fantasiados e pelo onipresente Dr, Manhattan, terminava em nossa realidade. Na arte conceitual do projeto do diretor de O Ultimato Bourne e Capitão Phillips, Paddy Considine, Hilary Swank e Denzel Washington ocupavam os papéis de Niteowl, Silk Spectre e Dr. Manhattan. O tom niilista do roteiro, e uma conclusão sombria e apocalíptica fizeram o estúdio puxar o freio. E o projeto finalmente foi para as mãos de Zack Snyder, que colocou sua visão nos cinemas em 2009 (o trailer é esse aí embaixo).

Até aí, mais de duas décadas já tinham passado desde a publicação de Watchmen. Alan Moore, depois de ver algumas adaptações desastrosas de sua obra (como Do Inferno e A Liga Extraordinária), exigiu ter seu nome removido de qualquer versão de seus quadrinhos. O filme de Snyder é, ao menos, a melhor versão possível de uma história complexa e cheia de nuances – mesmo que o texto original tenha sido retalhado, com o clímax modificado para compensar a ausência de uma subtrama sobre uma invasão alienígena. A decisão de Lindelof e da HBO em se afastar dessa versão e voltar para a HQ é a mais inteligente – e mais inteligente ainda é não só voltar ao gibi, como também extrapolar a trama original para construir uma nova história com os mesmos temas, como a corrupção pelo poder absoluto e a transferência desse mesmo poder do cenário político para vigilantes fantasiados. Afinal, como o mundo real reagiria à presença de "heróis" que agem à margem da lei?

Essa é a linha que parece conduzir a nova série. Embora traga alguns signos direto da minissérie nos quadrinhos (a bandeira de "Contos do Cargueiro Negro", uma HQ dentro da HQ; os relógios com os ponteiros cada vez mais próximos de marcar a meia-noite, que seria destruição por uma guerra nuclear de acordo com o doomsday clock científico), Watchmen de Damon Lindelof acompanha personagens originais em um futuro ainda violento e incerto. Vigilantes continuam fora da lei, e parecem ter ressurgido na América. A polícia traja uniformes mascarados, aumentando o clima de totalitarismo e de eliminação do indivíduo. Outro grupo, com máscaras que remetem ao psicopata Rorschach, parece uma milícia pronta para um pedaço de justiça violenta. "Somos todos, não somos ninguém, somos invisíveis", eles bradam. O clima é de fim do mundo. Aparentemente, o relógio está correndo novamente. Embora Alan Moore tenha dito ao longo dos anos que Watchmen é muito mais uma celebração dos super-heróis do que sua desconstrução, o mundo abraçou sua obra como precursora de um estilo sombrio e violento que, para o bem e para o mal, tornou-se sinônimo de quadrinhos adultos. "Nada termina de verdade", diz o Dr. Manhattan ao final de doze edições. Com a versão que chegou ao cinema uma década atrás, e a nova série que promete trilhar um novo caminho, ele não poderia estar mais certo.

Regina King vigia o futuro de Watchmen, agora como minissérie na TV

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Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.