Deslumbrante, O Rei Leão enche os olhos mas não fala ao coração
Roberto Sadovski
11/07/2019 13h00
Mal começa O Rei Leão, releitura da animação clássica da Disney, e você já sabe exatamente como estará nos próximos minutos: olhos marejados, garganta travada, coração palpitando. O diretor Jon Favreau sabe exatamente como pressionar os botões da nostalgia, e usa a tecnologia mais fantástica já bolada para fazer filmes ao reconstruir a abertura do desenho. Está tudo no lugar. A tomada aérea pela paisagem africana; animais em marcha até o rochedo que abriga sua "família real"; a apresentação de Simba, herdeiro de tudo que o Sol toca; "Circle of Life" arrebentando nas caixas de som. A reconstrução de uma sequência tão familiar, agora trocando animação tradicional por tecnologia digital fotorrealista, é de tamanho deslumbre que a emoção é genuína. É também o ponto de partida perfeito para o ápice de uma jornada do estúdio em reimaginar seu catálogo para o novo século, com uma nova sensibilidade, sem perder a conexão com o que fez dos filmes originais tão especiais em primeiro lugar.
Até que a história começa de fato. E meio que tudo desaba.
Não entenda mal. O Rei Leão ainda é um assombro, uma fábula inspirada tanto no Hamlet de Shakespeare quanto em Kimba, o Leão Branco, de Osamu Tezuka. É uma das materializações mais sensacionais da jornada do herói, em que o protagonista precisa encarar os erros de seu passado antes de emergir como dono de seu próprio destino. O desenho animado, que a Disney lançou com sucesso estrondoso em 1994, foi além das entrelinhas temáticas, forjando toda uma geração que aprendeu com a saga de Simba lições valiosas sobre perda, sobre traição, sobre legado, sobre ir além do que todos esperam de você – especialmente você mesmo. Sem falar que é uma aventura empolgante, um musical divertido, recheado de coadjuvantes que cravaram seu nome na cultura pop. A versão de Favreau segue o roteiro original quase à risca, com uma ou outra liberdade que são seu toque à história – alguns personagens ganham mais espaço, algumas cenas são estendidas, canções mudam de lugar. A grande diferença é o design dos personagens, que perdem o visual levemente antropomorfizado do desenho, substituído por rendições hiper realistas de cada animal. E é exatamente aí que está o problema.
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Veja bem, um leão não tem uma gama de expressões faciais como um ser humano. Ou um pássaro, um babuíno, um javali ou um suricato. Por mais emoção que o impressionante talento vocal convocado para o filme possa imprimir, existe um limite de até onde essa carga dramática pode ser traduzida em um animal que, tirando um leve movimento de lábios, é basicamente protagonista de algum documentário do Discovery Channel. Ao recriar cada um dos momentos do desenho com realismo extremo, Favreau arriscou roubar de seu filme um elemento lúdico, essencial para criar conexão emocional com a platéia. Ele mesmo havia feito um trabalho similar em Mogli, O Menino Lobo, mas no filme de 2016 havia um protagonista humano que ajudava a "vender" a bicharada falante a seu lado. Aqui não existe nada real, nada palpável: tudo em cena, do céu à savana à floresta aos animais, é uma criação digital. É a tecnologia empregada por James Cameron em Avatar elevada ao cubo, reproduzindo paisagens tão perfeitas e tão realistas que, em certos momentos, a mente liga o alerta de que tudo aquilo é falso. Ok, os leões falantes meio que já entregam isso, mas é inevitável que a razão triunfe sobre a emoção. E foi aí que O Rei Leão cometeu seu maior pecado: é um espetáculo, mas lhe falta substância. Falta alma.
Não tenha dúvida que o filme de Favreau vai mudar fundamentalmente a forma de pensar em filmes daqui em diante. É um movimento irrefreável: a caixa de ferramentas chegou a tal ponto evolutivo que absolutamente nada é impossível de ser recriado no cinema. Claro que filmes como Jurassic World ou Vingadores: Ultimato já haviam cruzado essa linha. Mas O Rei Leão não pretende inventar um mundo de fantasia, e sim reproduzir a realidade tal qual ela é. E não falo só em paisagens, mas em personagens, em relevo, em condições climáticas, em luz e sombras. Esse é o ponto zero em que as coisas não precisam necessariamente ser captadas por lentes de uma câmera, e sim criadas com sequências de zero e um. É outro passo na constante evolução da tecnologia do cinema. E não precisamos romantizar o celuloide, como diretores que se recusam a usar câmeras digitais, preferindo sempre a "verdade" de um negativo de 35mm, apenas enfatizar que é apenas mais uma ferramenta. Poderosa, mas só é eficaz com artistas de enorme talento no comando.
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E é com esse talento, de forma inegável, que O Rei Leão é uma obra de arte. Toda a tecnologia está, afinal, a serviço de uma história que, mesmo com a estranheza causada pelo elenco digital, ainda tem capacidade de encantar. A cena inicial ainda é o seu melhor momento (também o era no filme de 1994, então está tudo certo), mas Favreau entende do riscado. Ele sabe conduzir a narrativa com o sadismo de quem pode traumatizar uma nova geração de crianças no momento em que Mufasa (mais uma vez com a voz de James Earl Jones) despenca para seu destino trágico em meio a um estouro de gnus. O conluio de Scar (Chiwetel Ejiofor) com as hienas (que triplicaram em número mas perderam toda sua personalidade) ao som de "Be Prepared" é ainda mais assustador na nova versão. Timão e Pumba continuam os MVPs da aventura, e compensam a falta das cenas absurdas que só a animação poderia proporcionar com o trabalho impecável de Billy Eichner e Seth Rogen – "Hakuna Matata", a música, continua espetacular. Se Beyoncé empresta uma certa realeza à leoa Nala (que ganha seu próprio momento de empoderamento na batalha final), o mesmo não pode ser dito de Donald Glover, soando jovem e frágil demais como o Simba adulto.
São detalhes, claro, que ganham mais ou menos vulto com a expectativa ajustada de cada um. Fãs radicais do desenho animado (bom, "fã radical" é um pleonasmo) vão analisar cada segundo com uma lupa. Eu vou concordar com cada um que sentir falta do sarcasmo de Scar, ou de sua expressão insanamente triunfante na morte de Mufasa. Zazu tem a voz de John Oliver, mas um pássaro tem ZERO variedade de expressões. Também vou concordar com qualquer um que achar a canção original entoada por Beyoncé, "Spirit", uma música meia boca que não merece seu lugar ao lado das pérolas originais de Tim Rice e Elton John. Por outro lado, O Rei Leão é um espetáculo inebriante, em que sessões repetidas serão fundamentais para absorver o assombro tecnológico que recria, com precisão cirúrgica, fauna e flora dignos do Animal Planet. O sujeito nostálgico, que assistiu ao desenho quando criança, certamente vai criar um momento mágico ao mostrar essa nova versão a seus próprios filhos. Unir gerações, afinal, sempre fez parte do trampo da Disney. Mas nunca vou perdoar O Rei Leão por quebrar o sub-gênero das "adaptações live action". Parece real… Ora, É real! Mas não tem um pixel ali, uma nuvem, uma folha, uma formiga ou um leão que não tenha saído de um computador. Bem vindo ao futuro.
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Sobre o autor
Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".
Sobre o blog
Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.