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Sequência de O Iluminado, Doutor Sono equilibra mundos de King e Kubrick

Roberto Sadovski

07/11/2019 01h58

Doutor Sono é um filme sobre trauma, sobre como eventos experimentados na infância podem refletir de forma devastadora na vida adulta. É também matéria prima perfeita para uma trama de terror psicológico complexa, em que fantasmas podem servir de metáfora para a manifestação do inconsciente ao lidar com acontecimentos intensos e indesejados. A coisa complica por que Doutor Sono é também a continuação de O Iluminado, ao mesmo tempo um dos livros mais impactantes da carreira de Stephen King e um dos filmes mais marcantes da trajetória de Stanley Kubrick. Coube ao diretor Mike Flanagan equilibrar a obra de dois mestres, já que uma adaptação de Doutor Sono para o cinema não poderia de forma alguma ignorar a iconografia criada por Kubrick em 1980 – trabalho para o qual até hoje King torce o nariz. Tinha tudo, literalmente, para dar muito errado.

É prova do imenso talento de Flanagan, portanto, que ele tenha feito desse limão uma limonada. Doutor Sono é um filme de terror ancorado mais na construção de uma atmosfera densa e do desenvolvimento sem pressa de seus personagens do que uma obra limitada a sustos ligeiros. Mesmo com a presença onipresente de King, a verdade é que o filme é muito mais uma continuação de O Iluminado – o filme, não o livro. Assim como Kubrick, Flanagan fez alterações profundas no texto de King para acompanhar mais de perto a obra de Kubrick. Talvez, mesmo sendo heresia, tenha sido para melhor. Nos dois casos, as versões para cinema do texto do mestre do terror ignoram longos nacos da história que desviam da narrativa em arroubos contemplativos para se concentrar no básico: na jornada do protagonista, seus conflitos e conclusões.

Rose (Rebecca Ferguson) e seus seguidores em meio a um banquete

E não teria como Doutor Sono não ser um filme sobre trauma com um protagonista como Dan Torrance. Depois dos eventos trágicos que ele testemunhou quando criança, quando seu pai Jack Torrance enlouqueceu ao se isolar com mulher e filho no imponente Overlook Hotel, Dan tornou-se um adulto marcado pela sombra de um psicopata. Pior: os fantasmas do Overlook o seguiram, e ele teve de aprender a criar caixas em sua mente para aprisionar os espíritos que o atormentavam e tentavam, desde a infância, roubar seu "brilho", seu poder paranormal que por fim o manteve vivo tantos anos atrás. Aos poucos Dan encontra paz e, após décadas de álcool e violência, uma forma de tentar entender o que atormentava seu pai, ele se estabelece em uma cidadezinha como enfermeiro, usando parte de seu poder para dar conforto a pacientes em um asilo que se encontram às portas da morte. Ao mesmo tempo, ele passa a se comunicar telepaticamente com uma adolescente, Abra, que demonstra possuir o brilho com uma força que ele jamais teve.

Seria um final feliz se não fosse a revelação de um culto de vampiros dessa mesma energia, liderado por Rose (Rebecca Ferguson, linda e letal), que busca há décadas (séculos?) crianças com o este dom para dele se alimentar. Ao matar um menino em um ritual de tortura ("A dor purifica o brilho", justificam os assassinos), Rose sente a presença de Abra e passa a persegui-la. A jovem, por sua vez, busca a ajuda de Dan. É uma mudança fundamental na caracterização dos personagens: se em O Iluminado Danny Torrance era um garoto assustado, assombrado por espíritos e por um poder que não consegue compreender, em Doutor Sono Abra se apresenta como uma jovem corajosa, que pensa em confrontar, e não fugir, de um predador capaz de matá-la. Relutante, Dan por fim traça um plano para enfrentar os vampiros, e sua história completa um círculo quando todos os caminhos levam novamente ao Overlook.

O retorno ao Overlook Hotel traz fantasmas do passado

Mike Flanagan sabia que tinha de equilibrar a sensibilidade de King com a força visceral de Kubrick, e seu Doutor Sono consegue encontrar a essência de ambos os autores no meio do caminho. O diretor, alçado ao primeiro time do gênero depois da brilhante série A Maldição da Residência Hill para a Netflix, acerta ao deixar o terror causticante do filme de 1980 de lado, buscando em vez disso um tom perturbador, uma tensão crescente que encontra amparo na interpretação contida de Ewan McGregor, que faz aqui um anti-Jack Nicholson, trocando loucura maníaca por uma certa estranheza em sua expressão, e no otimismo por vezes imprudente de Abra, personificado pela ótima Kyliegh Curran. E vale procurar por Henry Thomas, desaparecendo em uma ponta surpreendente ao mostrar que, muitas vezes, uma solução hollywoodiana à moda antiga pode ser melhor do que uma tecnologia rejuvenescedora que, quando passa do tom, mais distrai do que ajuda a contar a história.

Equilíbrio é, por fim, a palavra de ordem em Doutor Sono, com respeito e reverência ajudando na balança. Mesmo que o terceiro ato se renda ao fan service desavergonhado, transformando em anticlímax uma investida final desenhada desde a primeira cena, Mike Flanagan conduz a trama sem pressa e sem se render a sustos fáceis. No meio do caminho, consegue apresentar sequencias do mais puro terror, mostrando que o texto de King, por vezes diluído nas mãos de artistas menores, ainda é poderoso, inquietante e assustador. O que Flanagan fez, por fim, foi um híbrido, um artefato que consegue extrair o melhor de King e também de Kubrick sem perder voz própria. Não vai jamais tomar o lugar de O Iluminado. entre os clássicos absolutos do gênero – e nunca teve essa intenção. É, isso sim, uma celebração da imaginação de artistas capazes de transformar seus próprios traumas e tormentos em entretenimento.

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Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.