Perturbador e perigoso, Parasita é o melhor filme que você vai ver em 2019
Roberto Sadovski
13/11/2019 06h32
Parasita é um filme perigoso. O sul coreano Bong Joon-Ho criou uma sátira social que não se contenta em ser colocada em uma caixa. É um caleidoscópio de tom e de intenção, com o diretor conduzindo a narrativa com precisão operística. É ousado ao passear por diversos gêneros sem nunca se ater a nenhum. É engraçado de maneira nervosa, romântico em sua constante tensão, aterrorizante em seu realismo brutal. É um filme de ideias, e com o mundo completamente fora do eixo, como o noticiário teima em nos lembrar a todo momento, consolida a noção que ideias podem ser o estopim do caos. É um filme de alcance universal, reverberando abismos profundos comuns a cada pátria, a cada povo, a cada camada social. Parasita é tudo isso. E é também o melhor filme que você vai assistir em 2019.
O ponto de partida relativamente simples desdobra-se sem gordura e com velocidade: como a família Kim, aninhada no estrato mais baixo da sociedade coreana, consegue inserir-se, como um vírus, no coração da família Park, que, no outro extremo, representa a elite endinheirada do país. Os Kim vivem resolutos em sua pobreza. O pai, Ki-Taek (Kang-Ho Song, uma constante nos filmes de Bong), está desempregado e não parece disposto a mover um músculo para sair dessa condição. Ele conseguiu, aos trancos e barrancos, uma casa para a família – um cubículo abaixo do nível do asfalto, em que a única janela mal alcança a rua e os bêbados que insistem em ali se aliviar, aumentando a sensação de sujeira e degradação. Existe uma sugestão de glória nos Kim, com a medalha olímpica um dia conquistada pela matriarca Chung-Sook (Hyae Jin Chang), exposta quase que como uma provocação. As coisas parecem mudar quando um colega deixando o país indica o caçula, Ki-Woo (Choi Woo-shik) como tutor da filha do milionário Donk-Ik Park – sua irmã, Ki-Jung (Park So-Dam), forja os documentos que comprovam uma faculdade. Woo enxerga uma abertura e aponta Jung, com um nome falso, como professora de arte do filho mais novo dos Park. Não demora para eles ejetarem o motorista e a governanta dos ricaços e colocarem pai e mãe, igualmente assumindo outras identidades, nessas funções.
O celular como único meio de democratização social… se tiver wi-fi
A primeira metade de Parasita sugere uma comédia nervosa em que os pobres, uma vez insinuados na vida dos ricos, percebem que talvez eles pertençam àquele lugar. A sensação é ampliada quando os Park viajam para o campo em um fim de semana, deixando os impostores experimentando a boa vida, em uma casa bem acima do nível da rua, cercada de árvores, idilicamente deslocada da realidade das ruas de Seul. Alternando humor refinado e momentos de tensão, com a identidade dos Kim às vezes a um fio de ser revelada, Bong Joon-Ho já teria um campeão em mãos. Ele costura sua crítica às diferenças de classe com habilidade, sem esfregar suas convicções político-sociais em cada cena. Os Kim tentam elevar-se, metaforicamente e literalmente, além do nível permitido por uma estrutura social desenhada para mantê-los no andar de baixo: seja criando uma fábula que os coloque como engrenagens essenciais dos ricaços Park, seja encostando o celular no teto de sua casa quase subterrânea para garfar algum sinal de wi-fi. Mas quando Parasita apresenta pessoas num nível, também metafórico e literal, ainda mais baixo que os Kim, o filme dá uma guinada nervosa para mostrar até onde um indivíduo é capaz de ir para manter o sentimento de pertencer, de ser visto, de ser alguém – mesmo que seja em uma estrutura baseada em mentiras.
Bong em nenhum momento busca a sutileza. A chuva torrencial que transborda o esgoto no cubículo subterrâneo que os Kim chamam de lar não é nada metafórica: é a perda real do senso de humanidade, é perceber que não há malandragem ou esquema quando o mundo mostra sua faceta mais crua. O cineasta também é direto ao mostrar que nada disso sequer registra para quem eleva-se bem acima do nível da água, montados em uma torre de dinheiro, de futilidade e de ignorância. Ainda assim, em nenhum momento Parasita coloca os ricos como os vilões – não não se furta a apontar que eles definitivamente são parte do problema. Se os "parasitas" parecem ser a princípio a família de golpistas que se entranham no cerne de um núcleo familiar da alta classe, o conceito parece ser fluido, mudando de perspectiva ao longo da narrativa. Bong vai além do simplismo de "ricos ignorantes, pobres malandros": seu filme é sobre perspectivas, sobre auto imagem, sobre camadas sociais quase imperceptíveis que se mostram abissais. É um aspecto evidenciado quando um personagem, vendo outro em condições deploráveis, pergunta como ele consegue sobreviver daquela forma – e sequer percebe o espelho à sua frente, com sua leve ascensão social modificando seu próprio reflexo.
A felicidade ignorante da elite do andar de cima
A filmografia de Bong Joon-Ho não esconde sua forte veia anticapitalista. A diferença, talvez, é que ele apresentava suas ideias nas fronteiras de gêneros fantásticos. A criatura incontrolável do terror O Hospedeiro não fazia distinção ao devorar ricos ou pobres, mas foi em uma família de classe média rasteira que o cineasta encontrou a voz para guiar sua narrativa. Na brilhante ficção científica O Expresso do Amanhã, o conflito de classes é explícito, com a força de trabalho em um trem que percorre ininterruptamente um planeta Terra congelado por uma nova era glacial revoltando-se com a elite que governa com força bélica. A fábula Okja mira seu arsenal contra o poder de multinacionais sem face, representadas aqui por um conglomerado disposto a arrancar um animal gigantesco de seu habitat, colocando em jogo sua amizade com uma jovem. Parasita é a extensão natural dos temas mais caros ao diretor, que ganham contornos ainda mais assustadores porque são apresentados sem o disfarce de um gênero cinematográfico fantástico.
E o realismo em Parasita é sufocante, especialmente em países em que as diferenças social são igualmente explícitas. Como o Brasil, que tem uma estrutura social em que meritocracia é uma piada, o abismo entre classes aumenta em progressão geométrica e o lado de cima mantém-se, por ignorância ou por falta de empatia, totalmente alheio aos conflitos e à realidade do lado de baixo. Em uma sociedade em que os mais ricos dependem da mão de obra dos mais pobres, com suas babás e faxineiras e empregadas e motoristas, como eles reagiriam a um evento que colocasse todos em risco na mesma proporção? Quem correria aos botes do Titanic para salvar a própria pele? Parasita tenta responder, de maneira abrupta, o que acontece quando estes mundos colidem. A história nos ensina, não importa a escala, que lutas de classe sempre terminam em sangue. Para Bong Joon-Ho, é óbvio que manter o espaço entre abastados e desassistidos é insustentável, mas a sociedade vai dar de ombros até o limite. A indiferença com o que enxergamos todos os dias ao colocar a cabeça pela da janela é brutal e desconcertante. O que o diretor pergunta, com a obra de arte que é Parasita, é quem teria coragem de voltar seu olhar para o lado de fora.
Sobre o autor
Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".
Sobre o blog
Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.