Topo

O charmoso Artista do Desastre mostra a criação do pior filme da história

Roberto Sadovski

25/01/2018 07h33

Existe um prazer quase pornográfico em observar um desastre. É como acidente em descida de serra: a gente tira o pé do acelerador para conferir o estrago mas segue em frente pra não impedir o fluxo. The Room, bomba dirigida (e escrita, e produzida, e protagonizada) por Tommy Wiseau em 2003, é uma dessas pérolas, um filme que, de tão ruim, promove uma satisfação irresistível ao ser descoberto. Mas não se engane: a curiosidade mórbida é o único motivo para assistir a essa vergonha executada por um sonhador sem o menor talento para entender os princípios básicos do que seria um filme. É difícil ver até o fim, mesmo em clima de zoeira. Artista do Desastre, por outro lado, é uma delícia de filme, uma tragicomédia biográfica (existe isso?) que usa uma trupe brancaleônica e seu guru insuspeito como ponto de partida para uma espiada doce, divertidíssima e muito charmosa na linha que traça o limite da obsessão e no próprio processo criativo. E que alívio descobrir que James Franco, só como comparação óbvia, não é Tommy Wiseau.

O melhor atributo do filme é sua honestidade. Artista do Desastre podia facilmente transformar Wiseau numa caricatura, numa piada, num maluco excêntrico que usou uma conta bancária de fundo aparentemente infinito para fazer o mundo dançar na batida de seu tambor. Em vez disso, James Franco usa de um humor brutalmente desconcertante para tentar entender de onde veio sua auto estima aparentemente infinita para insistir em escrever e executar um filme que, obviamente, não tinha pé nem cabeça. Mesmo quando todos a seu redor já se conformam com sua loucura, Wiseau (interpretado pelo próprio James) mantém total convicção de estar rodando sua versão de Cidadão Kane. Observar sua jornada é um deleite, e Franco acerta no equilíbrio do sujeto assombrado pela necessidade gigante de agradar a todos e provar que é capaz. Nossos "olhos" nessa aventura pertencem a Greg Sestero (Dave Franco, irmão de James, marcando o primeiro trabalho em conjunto da dupla), que conhece Wiseau em São Francisco, fica fascinado por sua personalidade destemida e o acompanha a Los Angeles para realizar seu próprio sonho em ser ator.

Leia também
Por que Logan foi indicado ao Oscar e Mulher-Maravilha não
Blumhouse: como funciona a produtora que investe pouco e lucra… horrores!
Nos 10 anos de Batman – O Cavaleiro das Trevas, o que a DC aprendeu?

Seth Rogen e a equipe de The Room observam a criação do desastre

O filme é, por sinal, baseado no livro escrito por Sestero anos depois da experiência em trabalhar com Wiseau em The Room – depois de um tempo afastados, por sinal, eles voltaram a ser amigos. Artista do Desastre não tem pressa em saltar para os bastidores do desastre, achando tempo para familiarizar a plateia com seus protagonistas. Quase consegue: fica claro que Sestero, mesmo sonhador, é dedicado, e aos poucos ele enxerga o tamanho da roubada tecida por Wiseau, mas a lealdade ao amigo o faz seguir firme até o fim. Tommy, por outro lado, é um grande mistério, já que o filme não responde (e nem tenta escavar) sua origem, sua idade (as informações disponíveis são conflitantes e não confirmadas) e nem mesmo de onde veio tanto dinheiro – só em The Room ele torrou cerca de 6 milhões de dólares, mais uma grana para erguer um cartaz na principal avenida de Los Angeles e um extra para manter o filme em cartaz na cidade pelo tempo necessário para uma qualificação ao Oscar. Sim, ele acreditava que era para tanto.

O filé de Artista do Desastre, porém, chega mesmo quando James Franco começa a destrinchar o doloroso processo das filmagens de The Room. O elenco amador era incapaz de transmitir qualquer verdade. A equipe técnica (no filme liderada por um Seth Rogen no topo da forma) acostumou-se com os desmandos de seu líder porque, ora bolas, os cheques sempre eram descontados. O maior atributo da direção de Franco, porém, é reproduzir a tensão interminável de um grupo de pessoas que parecia dividir um barco a deriva em meio a uma tempestade. As cenas mais involuntariamente engraçadas da obra de Wiseau (você já deve ao menos ter visto o "I did not hit her, I did naaht!… oh, hi Mark" nas internets da vida) ganham releitura fiel – não saia até o fim dos créditos para uma surpresa bacana! James Franco se mostra um diretor habilidoso ao criar uma empatia que mistura doçura e desconforto, e fica óbvio o carinho que ele direciona ao irmão, que em troca entrega uma performance delicada e desafiadora. É impossível não enxergar nos irmãos Franco a mesma energia e a mesma paixão que fez de Tommy Wiseau um sujeito tão determinado – com a diferença que eles, obviamente, tem talento.

Sharon Stone (ela mesma!) dá um talento na juba de Dave Franco

Só não vale comparar Artista do Desastre com Ed Wood, pequena obra prima que Tim Burton cometeu em 1994 com Johnny Depp no papel do "pior diretor de todos os tempos". Embora ambos os filmes façam uma sessão dupla bacana sobre amizade, a paixão pelo cinema e o valor de acreditar nos próprios sonhos, é óbvio que o criador de Plan 9 From Outer Space ralou absurdos para tirar cada um de seus filmes, todos horrorosos, do papel. Ele sofreu com a falta de dinheiro, de recursos e de investidores dispostos a bancar suas ideias bizarras. Wiseau, por outro lado, experimentou apenas a rejeição da indústria como sofrimento, já que ele teve dólares gordos para filmar e lançar seu filme, com direito a pré estreia e tapete vermelho – até hoje em roda o mundo em sessões lotadas de sua obra, com a plateia recitando cada linha de diálogo com devoção. Mas a gente pode, por sinal, agradecer a James Franco por nos poupar a tortura de ter de assistir a The Room – mesmo que isso deixe a experiência de ver Artista do Desastre mais completa. O outro lado da moeda é que Artista do Desastre simplesmente não existiria sem The Room. Esse negócio de escrever certo por linhas tortas é mesmo um mistério.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.