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The Post: Spielberg vai ao passado para discutir o atual estado das coisas

Roberto Sadovski

26/01/2018 05h41

Existe o filme certo, existe a hora certa, e existe The Post – A Guerra Secreta. Poucas vezes em sua brilhante carreira Steven Spielberg capturou o zeitgeist de maneira tão precisa como neste drama que, basicamente retrata a batalha de jornalistas em posse da verdade contra um governo ancorado numa mentira de décadas. O diretor, porém, vai além, emoldurando seu filme com um vigor que vai além do conceito de "baseado em fatos reais". Spielberg executa The Post como um filme de ação, em que diálogos surgem tão tensos quanto uma boa cena de luta; em que decisões potencialmente catastróficas são tomadas em uma ligação. Tudo aqui é muito dinâmico e envolvente, como os bons clássicos ambientados em redações, como Rede de Intrigas ou Todos os Homens do Presidente (a gente já aprofunda essa questão). Em tempos de presidentes almofadinha, de "fake news" e de uma clara virada na posição do poder feminino, Spielberg parece acertar em todos os assuntos correntes, mesmo mirando no passado. Porque ele pode.
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Antes de mais nada, vale ressaltar que Spielberg é uma máquina! Assim como seu contemporâneo Ridley Scott, o diretor é tão versado na linguagem do cinema, e faz tudo parecer tão fácil, que ele consegue produzir, rodar, montar e lançar um filme como The Post em pouco mais de sete meses – isso que, durante as filmagens, Steven estava também imerso na complexa pós-produção de Jogador Nº 1, ficção científica que ele lança em março. E não estamos falando de uma empreitada fácil: The Post é um filme de época, com locações, figurinos e direção de arte mergulhadas nos anos 70, quando redações eram tomadas pelo dedilhar em máquinas de escrever e os limites da tecnologia de comunicação eram compensados com suor e pura determinação dos profissionais envolvidos na história. Um pouco como David Fincher retratou em Zodíaco, um tipo de cinema que a gente vê pouco atualmente e consegue extrair o máximo de prazer.

Tom Hanks e seu time esmiuçam os Documentos do Pentágono

A trama impressiona por não ter ganhado os cinemas antes. Tirando um punhado de documentários, a exposição dos Documentos do Pentágono, um calhamaço encomendado pelo Departamento de Defesa americano à CIA sobre o desenvolvimento da Guerra do Vietnã, ainda não tinha um tratamento cinematográfico à altura. Talvez por roteiristas abraçando o tema tenham demorado em encontram uma linha narrativa. Foi a escritora Liz Hannah quem primeiro vendeu sua visão para a história, um roteiro que Spielberg decidiu rodar ao ler seu primeiríssimo tratamento – o texto ganhou uma revisão por Josh Singer, o diretor juntou as tropas e foi a campo. Em tempos de Trump, não é difícil enxergar o que cutucou a ferida de Spielberg: The Post acompanha Katharine Graham (Meryl Streep), proprietária do Washington Post, ainda um jornal local na capital americana no começo dos anos 70, obrigada a assumir o negócio da família anos após a morte do pai e depois do suicídio de seu marido, apontado para comandar o jornal. Quando o editor Ben Bradlee (Tom Hanks) coloca as mãos nos documentos, que provam que quatro presidentes mentiram sobre os reais motivos da manutenção do conflito, ela precisa escolher entre ser a dama da sociedade, amiga pessoal dos poderosos da capital ianque, ou alguém compromissada com a verdade.

Esse conflito é o coração de The Post, e coube a Meryl Streep retratar Kat Graham como uma mulher dividida entre dois mundos e duas responsabilidades, ciente de seu papel capaz de desestabilizar não só seu país como colocar seus amigos, em especial o ex-secretário de defesa Bob McNamara (Bruce Greenwood), no olho do furacão. Spielberg enxergou não só a oportunidade de contar uma história com reflexos muito claros na sociedade americana contemporânea, com o atual ocupante do Salão Oval repetindo em seu twitter inverdades e absurdos que deixam até seus defensores hesitantes, como aproveitou para jogar o holofote em uma mulher que, numa época em que elas eram deixadas de lado quando a questão era política (entre outras decisões), deu um passo decisivo para calar os que não acreditavam em sua capacidade. The Post recorda essa quebra de paradigma com dignidade, e Meryl entrega uma interpretação que acerta em tom e intenção – não por acaso, marcou sua 21ª indicação ao Oscar.

Spielberg dirige Hanks e Meryl Streep

O aspecto mais fascinante em The Post, contudo, é seu retrato nos mecanismos que conduzem a ética do jornalismo sério. Uma reportagem, afinal, não consiste em dedilhar algumas laudas e ligar as impressoras. No caso dos Documentos do Pentágono, o trabalho investigativo foi salpicado com uma pitada de sorte e doses gigantes de talento para entender o material em mãos. O elenco sublime arregimentado para o filme, que traz de Bob Odenkirk a Sarah Paulson, de Carrie Coon a Jesse Plemens, entrega uma energia que é traduzida em verdade: acreditamos em seus argumentos porque acreditamos em seus personagens. E "verdade", no fim, é a moeda mais valorizada pelo filme. O Washington Post uniu-se ao gigante New York Times quando o governo americano, comandado então por Richard Nixon, ameaçou de forma direta sua ruína se eles não desistissem das reportagens, alegando "segurança nacional". os jornalistas compraram a briga, levada à Suprema Corte, e tiveram uma vitória histórica. Impossível não pensar num certo topete alaranjado gritando "fake news", ou em certos pré-candidatos vendidos como "mitos" que ameaçam fechar jornais que contestem suas biografias tortas.

No fim, é a verdade que importa em uma sociedade democrática, e essa é a contribuição de The Post para esse nosso momento no tempo. Claro que a ação é dramatizada, e a vida real pode não ter se desenrolado de maneira tão sexy e emocionante como no cinema – e não poderia ser diferente. Mas poucos cineastas, principalmente aqueles cuja carreira já conta algumas décadas, conseguem se manter ainda relevantes e conscientes do mundo ao redor e das histórias que precisam de maior urgência para ser contadas. Aos 71 anos, Steven Spielberg tem a máquina hollywoodiana em mãos e a usa, entre um ou outro espetáculo sensorial, para nos lembrar da força dessas boas histórias. O que me lembra de um detalhe: depois da última (e arrebatadora cena) de The Post, vale uma volta no tempo com Alan J. Pakula, Robert Redford e Dustin Hoffman. O bom cinema, e as boas histórias, são atemporais.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.