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Um papo com o diretor de Serra Pelada sobre caos, controle e poder

Roberto Sadovski

17/10/2013 16h31

Serra Pelada era, na falta de uma definição mais detalhada, o inferno. Na busca incansável pela fortuna trazida pelo ouro, milhares de brasileiros foram cavar seu sonho em um buraco no meio da desolação no Pará. Estima-se que trinta toneladas do minério precioso foram extraídas do garimpo, que mudou vidas, gerou cidades e criou uma lenda. Hoje, Serra Pelada se tornou um lago, um buraco preenchido pela chuva, por infiltrações e pela ação da natureza quando o homem retira sua mão pesada. Ainda há ouro lá, entre outros minérios. O que não existe mais é o formigueiro humano que, como o futebol e a bossa nova, criaram parte da imagem do Brasil no mundo.

E essa, claro, não é a história que Heitor Dhalia quer contar.

Quando o diretor de Serra Pelada chega para nosso papo – compreensivelmente atrasado –, ele ainda está sob o efeito da pré-estreia de seu filme na noite anterior em São Paulo. Dias antes, o filme fora exibido com igual sucesso e repercussão no Festival do Rio. Heitor Dhalia está cansado. Mas, acredite, está feliz. "O filme ficou pronto, fechado, três semanas atrás", entrega de cara, sem entrar nos detalhes de como é tirar uma idéia do papel e vê-la ganhar vida. "Foi o resultado de muita pesquisa, muito trabalho e inúmeras dificuldades." A primeira, claro, foi a impossibilidade de filmar no garimpo original (que não existe mais) ou mesmo no estado do Pará (áreas que poderiam servir de cenário natural não são exatamente os lugares mais seguros no Brasil). Rodado no interior de São Paulo, Serra Pelada é uma recriação espetacular da vida de quem se aventurou à região no começo dos anos 80, quando foi anunciada a descoberta de ouro.

"Não é um documentário, e sim uma história ambientada naquele cenário", continua Dhalia. É, claro, a opção mais acertada. Ao revelar o elemento humano, ele deixa Serra Pelada atemporal: um filme, não um tratado sociológico. E, como filme que mira na identificação com a platéia, ele narra a história de dois amigos – e como o garimpo os alterou. Eles são Joaquim (Júlio Andrade), professor de desempregado de São Paulo que vai para o garimpo em busca da fortuna do ouro. Ele leva Juliano (Juliano Cazarré), que abraça a oportunidade para fugir de agiotas e encontrar seu caminho. E é o que os dois encontram: primeiro como garimpeiros, depois como donos de um barranco. Nesse ínterim, eles descobrem a verdadeira natureza do homem ante o ouro – e contar mais é estragar o filme.

"Ter esse elenco foi inestimável", continua Dhalia. Não é exagero. Andrade e Cazarré entregam personagens bem delineados que representam dois aspectos opostos de quem busca pelo ouro numa terra de ninguém. Além deles, Wagner Moura (também produtor) dá outro show como Lindo Rico, que entende perfeitamente o que é necessário para sobreviver ali, e como o dinheiro compra poder, pessoas e vidas. A grande surpresa fica por conta de Sophie Charlotte. No papel da prostituta Tereza ela podia surgir como um clichê, mas mostra força ao dar mais densidade à personagem, que a certa altura sabe que não é, de forma alguma, dona de seu destino. É uma história de amizade, traição, poder e dinheiro, armada em um dos cenários mais reconhecíveis e, ao mesmo tempo, misteriosos, do Brasil.

Ainda assim, muito da história de Serra Pelada ficou de fora. "Um dos aspectos mais fascinantes daquilo era o Trinta", lembra Dhalia, falando sobre o vilarejo há 30 quilômetros do garimpo, onde ficavam as prostitutas e para onde os garimpeiros iam torrar suas fortunas. No garimpo, mulheres, armas de fogo e bebida alcoólica eram itens proibidos, seguindo as regras duríssimas impostas pela ditadura militar brasileira e executadas pelo militar Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió. "Colocar Curió na história seria abrir outro capítulo, seria falar sobre a guerrilha, sobre interesses políticos… seria outro filme", explica o diretor. Boa parte das imagens de Serra Pelada, por sinal, vem de registros jornalísticos da época e, surpreendentemente, de Os Trapalhões na Serra Pelada, filme que o quarteto rodou ali em 1982.

Quando eu comento que gosto de pensar no destino dos personagens depois que os acompanhamos em um filme, Dhalia sorri. "Nunca pensei nisso antes", comenta. Joaquim, o professor, pode até voltar para casa, mas ele jamais seria o mesmo. Juliano, o aventureiro, terminaria ou morto ou eleito deputado. Uma coisa é certa. Ninguém é o mesmo depois de experimentar uma vida em busca do ouro em Serra Pelada. Exausto mas satisfeito, Dhalia é um diretor diferente do que fez O Cheiro do Ralo, À Deriva ou mesmo o hollywoodiano 12 Horas. Mais confiante. "Filmar é difícil", suspira. Já de olho em seu próximo filme, que será ambientado no universo do cangaço – nada tão brasileiro e, ao mesmo tempo, tão universal. "Quero usar a experiência de Serra Pelada, abraçar um gênero", conclui. "E continuar fazendo arte, fazendo filmes."

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.