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Expresso do Amanhã mostra a necessidade de uma cota para filmes incríveis!

Roberto Sadovski

27/08/2015 00h38

snowpiercer

Lembro de um texto há algumas semanas, li aqui mesmo no UOL, em que cineastas brasileiros independentes, entre outras coisas, reclamavam da falta de espaço no circuito exibidor para seus filmes. Em alguns casos, mesmo ligando para o dono do cinema, não conseguia mais que uma semana em cartaz, em uma única sessão. A solução, muitos bradam, é passar ainda mais leis e regulações reduzindo o percentual de "blockbusters" ianques e fazendo com que a sala exiba mais filmes nacionais – independentes, ou indies, já que os nossos arrasa-quarteirões estilão humorístico televisivo andam meio que bem das pernas. É isso, produção?

"Digo-te não!", seriam as palavras de um certo Deus do Trovão, já que a cota que precisa ser criada urgentemente é a dos filmes incríveis-bacanas-pra-cacete-inventivos-originais-independentes-de-verdade. É a única maneira de obras espetaculares como Expresso do Amanhã não demorem meio século para estrear por aqui. As consequências, a saber, são gravíssimas. Essa ficção científica distópica, que entrou na lista de melhores filmes do ano passado de vários críticos de renome (!), é uma bomba atômica de tensão, performances de primeira (Chris Evans, Tilda Swinton, John Hurt, Song Kang Ho, Jamie Bell, Octavia Spencer), efeitos visuais enxutos, narrativa esquisita e uma coleção de momentos "não acredito que meus olhos estão testemunhando isso" de fazer o cinéfilo mais dedicado cair de joelhos. O problema é que, a essa altura, TODO MUNDO que adora cinema de verdade já deu um jeito de assistir ao filme por meios nada lícitos – minha cópia é o blu ray ianque, muito obrigado.

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Chris Evans, Song Kang Ho e Jamie Bell de papagaio de pirata

O atraso se dá, óbvio, por uma série de fatores. Cinema, para espanto de muitos, é um negócio. E um negócio caro. O dono de salas de cinema não está lá para ajudar na educação de um povo, para espalhar a cultura do país, para "dar uma força" a quem amarra qualquer oba-oba e chama de filme. Seu business é colocar traseiros nas poltronas, vender pipoca e garantir entretenimento da plateia. No meio tempo, claro, ele pode – e deve – ser plural em sua programação, enfileirando filmes que possam ser deglutidos por diversos públicos. Isso faz bem para seu próprio negócio. Mas o mundo, sr. deputado, é um lugar vasto, e filmes são feitos em seus quatro cantos. Tem muita coisa bacana por aí. Festivais são uma ótima maneira de mostrar coisa nova, de experimentar, mas o sujeito com a função de programar o cinema comercial (basicamente, tudo que você paga um ingresso para ver) termina com o trampo de equilibrar o material desovado pelos grandes estúdios (com mais grana de marketing e mais, usando uma palavra bonita, awareness) com filmes de menor poder de fogo, mas que também possam cumprir a função básica do cinema: entreter.

Como nosso circuito exibidor cresce mas ainda não é aquela potência, e a maioria das salas pertence a grandes redes, em shoppings e com cinemão fast food (que eu consumo com prazer, diga-se), o distribuidor, aquele que vai a festivais, assiste a uma dezena de coisas e compra títulos que possam ser legais por aqui, fica com suas opções reduzidas. Assim, filmes brilhantes como Expresso do Amanhã ficam na gaveta, às vezes por anos, esperando um espaço entre os gigantes. Não tenho muito o que reclamar, na real, já que aqui em São Paulo muitos cinemas, mesmo alguns confinados em shoppings, fazem uma salada excelente em sua programação, misturando produções para todos os gostos – uma espiada no que está em cartaz por aqui equilibra Gemma Bovery, PixelsLinda de Morrer, o novo Missão Impossível, O Pequeno Príncipe, Phoenix e Voo 7500. Mais eclético, impossível. O Brasil, claro, não é só São Paulo. Voltando ao ponto inicial, sou 100 por cento a favor de uma cota bad ass, em que filmes comprovadamente sensacionais (de potencial comercial e independente de seu país de origem), já nas mãos de algum distribuidor local, tenha sua exibição assegurada em horários humanos. Isso sim é garantia de diversidade cinematográfica, um decreto estatal que eu posso apoiar de olhos fechados!

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Detalhe do gibi original, O Perfura Neve, já lançado no Brasil

Ah, Expresso do Amanhã! Baseado numa série em quadrinhos francesa, o filme de Bong Joon Ho (O Hospedeiro, outro filme bad ass) mostra um futuro em que, para conter o efeito estufa, cientistas detonam uma "bomba fria" na atmosfera, tendo como consequência uma nova Era Glacial. O filme já começa mais de uma década depois da desgraça, com tudo que restou da humanidade habitando um imenso trem em moto-perpétuo em torno do planeta. Como manda nossa etiqueta torta, o trem é um retrato anabolizado da eterna luta de classes: os ricos habitam os vagões superiores, na frente do bólido, vivendo um hedonismo eterno; os pobres, que entraram sem pagar ingresso, se atropelam nos fundos, entre o motor, a sujeira e a morte. Chris Evans (o Capitão América, que usou seu capital para levantar a grana da produção) é o jovem que acredita numa revolução, que luta para que os miseráveis possam avançar e aproveitar as benesses dos privilegiados. Para isso, ele executa aos poucos um plano que o coloca em choque com a responsável pela disciplina no trem (Tilda Swinton, irreconhecível e excelente como sempre).

Como em toda boa ficção científica, Expresso do Amanhã é um microcosmo de quem nós somos. Joon Ho é um excelente arquiteto de mundos, construindo uma distopia crível em um mundo compacto. Sem a menor preocupação em ser sutil, o diretor monta em seu trem um retrato incômodo de cada aspecto desagradável da sociedade, e não economiza em absurdos e nem em surpresas. O que ele realiza, no fim das contas, é um exercício de constante tensão em que a plateia tenta adivinhar, a cada novo carro do trem, se é possível haver um final feliz. A história – e produções em que ele se espelha, como Planeta dos Macacos, Brazil – O Filme e Laranja Mecânica –, mostram que é bem difícil. Mas não é o fim que importa. É a jornada. No caso de Expresso do Amanhã, uma jornada que demorou um tantinho, mas finalmente chega para ser conferido da melhor forma possível: em uma sala de cinema.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.