Como JJ Abrams ressuscitou uma série que estava morta - a não ser pelos fãs
Vamos ser honestos, Star Trek não é tão bom assim. Os fãs podem ser os mais passionais da cultura pop. A marca já deixou uma iconografia sem igual como seu legado. Mas raramente o conceito da série, em que a humanidade vira seu olhar para a exploração das estrelas em um futuro utópico, encontrou uma execução à altura. Embora os devotos respirem em êxtase no altar de Trek, o resto da humanidade meio que dá de ombros. Cinco décadas depois de sua criação, a marca respira por aparelhos. Se hoje celebramos a data com algum fôlego, o mérito é de J.J. Abrams. Mas antes, um pouco de história.
A impressão é que Star Trek sempre foi assim, um acidente feliz. A série de TV, criada por Gene Roddenberry, teve três temporadas ousadas para a época, salpicadas por episódios absolutamete geniais, como "Mirror, Mirror", "Arena", "Space Seed" e "The City on the Edge of Forever". Ainda assim, o programa amargou uma audiência medíocre e foi embora em 1969, deixando uma legião de fãs inconformada com sua vida curta. A essa altura, o fervor dos devotos era o que mantinha a marca viva. Com reprises das três temporadas pipocando pelo mundo, e os entusiastas reunindo-se em convenções temáticas aos montes, Star Trek virou cult e ganhou mais vida.
Com o interesse renovado por uma série animada, mais o sucesso de Guerra nas Estrelas no cinema, Trek fez o salto para a tela grande em 1979 com um filme ambicioso, dirigido por Robert Wise (Amor Sublime Amor, A Noviça Rebelde). Os resultados artísticos e financeiros, porém, ficaram aquém das expectativas. E essa passou a ser a regra. De seis filmes com a tripulação original, mais quatro com a Nova Geração (uma encarnação na TV mais bem sucedida, que durou sete anos), o saldo foi uma verdadeira obra prima (A Ira de Khan, de 1982), três aventuras bacanas (A Volta Para Casa, de 1986; A Terra Desconhecida, de 1991; e Primeiro Contato, de 1996) e um punhado de filmes de ruins a medíocres. Na TV, A Nova Geração foi seguido de Deep Space Nine e Voyager, mas o gás havia terminado com Enterprise, cancelada em sua quarta temporada com uma audiência rasteira. Os fãs, claro, continuaram fazendo barulho, abaixo-assinados, campanhas. Não adiantou. Em maio de 2005, e depois de dezoito anos ininterruptos na TV, Star Trek morreu.
Mas não por muito tempo. O estúdio não ia deixar umamarca tão poderosa, que por muito tempo foi seu alicerce financeiro, adormecido indefinidamente. Entra em cena J.J. Abrams, que na TV criou Alias e Lost, e no cinema havia estreado, com louvor, com o terceiro Missão Impossível. Seu grande pecado, aos olhos da cominidade trekker, era não ser fã da série. O que, convenhamos, é irrelevante. O que Abrams fez com seu reboot nos cinemas em 2009 foi não só abraçar os conceitos de toda a série e criar uma ficção científica tão fantástica quanto absurda, mas também fazer um filme que pregava para além do séquito de devotos de Star Trek. Ao cometer a "heresia" de resgatar os personagens da série clássica com um elenco jovem, o diretor mostrou que uma boa história sempre deve ficar à frente da histeria de fãs que encaram Jornada como algo intocável, hermético e, no fim das contas, para poucos. A grita foi geral, com estes entusiastas acusando Star Trek versão 2009 de ser mais um filme de ação, e não um "verdadeiro" exemplar da série.
Daí é bom o pessoal acordar e cheirar o café. O que Abrams fez foi modernizar, respeitar e fazer da marca algo realmente popular. Foi injetar um espírito de blockbuster em uma série cambaleante e, francamente, inexistente longe de seu público-alvo. E com mérito: talvez só A Ira de Khan consiga superar o novo Trek em qualidade – e como cinema. Seu segundo filme como diretor da série, Além da Escuridão, trouxe justamente o icônico Khan de volta e é uma aventura excelente, cujo único pecado foi uma campanha de marketing equivocada que tentou esconder a natureza do vilão como uma grande "surpresa" do filme. Os fãs chiaram como nunca, mas a essa altura os mais radicais se tornaram uma caricatura, clamando uma propriedade que eles nunca tiveram. Na ponta do lápis, eles não importam: os dois filmes com o dedo de Abrams na direção faturaram, juntos, pouco mais de 850 milhões de dólares nas bilheterias – quase a soma de TODOS os dez filmes que os precederam.
O que nos leva a Sem Fronteiras, que celebra os 50 anos de Star Trek e dá inicio a um novo ciclo. J.J. Abrams agora toma uma posição de produtor, deixando a direção nas mãos de Justin Lin, o homem que transformou Velozes & Furiosos num colosso mundial. Mesmo prejudicado com um tempo de produção apertado, para coincidir com a celebração do cinquentenário da série, o filme surge como uma aventura mais acelerada que as anteriores, mas não menos emocionante. Sem Fronteiras é a culminação de todas as ideias de Trek, embaladas no pacote moderno idealizado por Abrams. Não é mais um filme hermético, criado para um grupo de devotos mais preocupado em encontrar defeitos. Trek se tornou um produto que agrada até o consumidor casual de cinema e que, no fim das contas, não sabe a diferença de wookie para vulcano.
Sem Fronteiras é também agridoce, já que foi produzido sob a sombra da morte de Leonard Nimoy, o Spock original, elo de ligação entre a série clássica e o reboot moderno. Em um filme sobre o poder da amizade e a força da união, a citação a Nimoy ganha mais força, em especial nos momentos que o filme de Lin desacelera e mergulha no que move seus personagens: a vontade de ser relevante, de fazer diferença, com a certeza de que os amigos sempre estarão ali. A segunda nota de pesar é a morte de Anton Yenchin, que interpreta o oficial Chekov, vitimado por um acidente tolo, que tem em Sem Fronteiras um de seus últimos trabalhos. A trama envolve a tripulação da Enterprise bem no meio de sua missão de cinco anos em explorar o universo, em ir onde ninguém foi antes. Ao atravessar um ponto do espaço não mapeado pela Federação, eles são atacados, a Enterprise destruida e sua tripulação à deriva em um planeta inóspito, prisioneiros do vilão Krall (Idris Elba, irreconhecível sob toneladas de maquiagem). Seu plano envolve completar uma arma biológica, em posse de Kirk e cia., e atacar a Federação, que troca a evolução da humanidade pela força por uma paz mal vista por Krall.
A escolha de Justin Lin como diretor, embora soe estranha devido a seu histórico com a série com Vin Diesel, mostra-se acertada. Ele imprime uma energia cinética que não deixa Sem Fronteiras estático. Ao mesmo tempo, caminha em território familiar: assim como Velozes & Furiosos, Star Trek é sobre família, sobre laços que vão além do sangue, sobre os sacrifícios de um em prol de todos. Sobre explorar e descobrir novos mundos, sobre a ficção científica como força motriz. É sobre celebrar as diferenças, promover a integração, mirar numa sociedade utópica em que diferenças raciais, sociais, de gênero, não tem mais relevância. O conceito original de Gene Roddenberry, tão diluido ao longo de décadas, agora repaginado por J.J. Abrams como um legítimo blockbuster. E agora, com Star Trek Sem Fronteiras, olhando mais uma vez para o futuro.
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