Star Wars: fãs reaças mostram o “lado sombrio” da devoção pela cultura pop
Star Wars: Os Últimos Jedi é um sucesso inequívoco. Com 560 milhões de dólares em caixa com menos de uma semana em cartaz, a aventura espacial foi acolhido pelo público e abraçado pela crítica. Mas tem uma turma torcendo o nariz. Uma turma que acredita que o filme de Rian Johnson é uma antítese de tudo que Star Wars representa e que, por esse motivo, deveria ser "retirado do cânone" da saga. Isso mesmo que você leu: alguns fãs acham que este Episódio VIII não merece estar ao lado de pérolas como A Ameaça Fantasma e nem deve ser considerado um capítulo oficial da série. Para isso, organizaram até um abaixo-assinado online, que causou mais barulho do que adesões. Basicamente o pessoal que detestou O Despertar da Força por ser "parecido demais" com o Guerra nas Estrelas original agora xinga muito no twitter Os Últimos Jedi por ser "diferente demais". É tudo muito engraçado se não fosse trágico, e é também o momento em que percebemos que os "fãs" mais radicais foram um pouco exagerados na devoção. Porque fã, meus caros, não é dono de nada.
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De cara, é bom deixar claro que o assunto não tem nenhuma relação com a qualidade do filme. Diz respeito ao suposto direito à propriedade que alguns entusiastas acham que possuem – ao ponto de imaginar que a Disney daria a mínima para uma minoria ruidosa berrando online. O caso de Os Últimos Jedi é a maior evidência que a turma mais, digamos, envolvida com Star Wars muitas vezes se atrapalha com a linha entre criadores, criaturas… e plateia. O processo de criar um filme é fluido, com ideias debatidas entre produtores, roteiristas e diretores. Quando o resultado é uma evolução bacana e tão fora da casinha como Os Últimos Jedi, acredito que seria motivo para celebração. Mas fã reaça é um ser que detesta que mexam no status quo. Pior ainda: ele acha que detém todo o direito sobre o que é melhor para cada personagem, como a narrativa deve se encaminhar, as origens e motivações de todo mundo em cena – mais que as pessoas de fato criando o filme. Não deixa de ser irônico que essa arrogância tenha como objeto justamente Os Últimos Jedi, que é um filme sobre… arrogância!
A avaliação negativa atribuida ao público no site Rotten Tomatoes, que reúne boa parte das críticas dos filmes na gringa, é sintomática sobre essa percepção que alguns fãs tem sobre as obras que cultuam. De acordo com o site, Os Últimos Jedi teria pavorosos 53 por cento de avaliações positivas pelo público – batendo de frente com os 92 por cento da crítica. Nenhum filme da saga, nem mesmo a açoitada nova trilogia que George Lucas dirigiu no começo deste século, tiveram números tão rasteiros. Seria preocupante se o filme não estivesse faturando o equivalente ao PIB de muito país, o que levantou a suspeita de fraude. Mesmo com a equipe do Rotten Tomatoes garantindo que os números são legítimos (e fazer o contrário seria assinar a própria sentença de morte), um grupo de fãs radicais da "direita alternativa" assumiu a autoria em sua página no Facebook, intitulada "Abaixo o Tratamento da Disney Para as Séries e Seus Fãs" (pode rir, sério). Segundo o Huffington Post, eles alegam o uso de bots para atacar o filme e jogar o percentual no chão. Ah, uma das coisas que incomoda essa rapaziada saudável do grupo? O fato de os novos filmes terem apresentado mais personagens femininos na série, que Os Últimos Jedi não poderia divergir tanto do já defunto "Universo Expandido" e que os homens devem ser recolocados na posição de "senhores da sociedade". Sim, é esse tipo de idiota.
Esse radicalismo não é novidade, mas foi turbinado depois do advento da internet. Imagino o caos que seria se a rede existisse em 1988, quando a Warner anunciou Michael Keaton como protagonista de Batman, que estava sendo preparado por Tim Burton. O estúdio foi inundado por milhares de cartas exigindo a escolha de outro ator, já que Keaton seria "magro demais" ou "esquisito demais" ou "engraçado demais" para retratar o Cavaleiro das Trevas. O que esse tipo de fã se recusa a enxergar é que uma obra artística segue uma visão, e essa visão precisa funcionar sem interferência externa. Burton, no fim, estava certíssimo em sua escolha, já que Keaton mostrou ser um Bruce Wayne perturbado e expressivo, exatamente como o filme que ele protagoniza. O mesmo barulho foi ouvido quando X-Men, de 2000, escalou Hugh Jackman como Wolverine ("Quem é esse cara? Tem de ser Glenn Danzig!") e Ian McKellen como Magneto ("Velho demais, não vai funcionar"). Até Ben Affleck, que é o menor dos problemas de Batman vs Superman, foi recebido com pedradas ao ser anunciado como o Homem-Morcego.
Se alguns devotos de Star Wars fazem piquetes por motivos pífios, nada se compara aos fãs mais radicas de Star Trek, os trekkers. Mais bem organizados, eles acreditam ter mais direito à série criada por Gene Roddenberry que a Paramount, proprietária da marca. Para essa rapaziada, a única coisa que configura "Trek de verdade" é a série clássica dos anos 60. Não sei se é nostalgia como patologia, não sei se é muito tempo livre. Mas o fato é que, para s trekkers, o estúdio só poderia lidar com o "cânone sagrado" da série após uma consulta a eles. Quando a divisão de TV da Paramount anunciou A Nova Geracão no fim dos anos 80, com uma nova tripulação substituindo Kirk, Spock e cia., foi como Sinéad O'Connor rasgando a foto do papa ao vivo no Saturday Night Live: protestos, gritos, agressão verbal, o pacote completo. No fim, a equipe estelar liderada por Jean-Luc Pickard (Patrick Stewart) ganhou tantos fãs quanto seus predecessores e sobreviveu a quatro longas no cinema.
A coisa ficou muito pior quando J.J. Abrams encabeçou o revival de Star Trek no cinema em 2009. Mesmo entregando uma aventura incrível, alinhada com o cinema moderno mas sem esquecer os conceitos de ficção científica sob os quais a série foi construída, Abrams entrou na linha de fogo dos fãs mais fervorosos e reacionários, que simplesmente odeiam um (ótimo) filme simplesmente por não ser o que eles consideram Star Trek. É muita falta de roça pra carpir, não é verdade? Star Trek: Além da Escuridão, segundo filme dessa nova série, também dirigido por J.J., chegou a ser escolhido como pior capítulo de toda a saga, atrás de bombas como Jornada nas Estrelas V: A Última Fronteira (em que William Shatner, o Kirk geriátrico da série de TV, encontra "deus" e pergunta por que ele precisa de uma espaçonave) e o próprio Jornada nas Estrelas: O Filme, que em 1979 levou Trek para o cinema em uma aventura pomposa e entediante. A série Star Trek Discovery, em exibição no Netflix, é a mais nova encarnação do programa e traz um respiro bem vindo a seus conceitos, indo além nas ideias de representatividade e comentário social, além de abraçar a ficção científica e a aventura. Os fãs tradicionais? Ah, eles odiaram, claro. Seja pelo design dos klingons, seja pela tecnologia ou pelo figurino, nunca é o Star Trek "que eles esperaram por doze anos para voltar à TV". Sejamos honestos: nunca seria. Eu só imagino o surto dessa turma se o Star Trek proibido para menores e dirigido por Quentin Tarantino se concretizar…
O fato é que tanta gritaria não faz a menor diferença. Star Wars e Star Trek – e tudo mais que é consumido como cultura pop – são propriedades intelectuais que precisam evoluir para continuar agregando novos fãs. Evolução e mudança exige sacrifício, mas é a única maneira de a arte sobreviver. Fãs que, de alguma forma, enxergam seu objeto de culto como sua propriedade, tem dificuldade em sair da zona de conforto. Talvez por isso a mudança lhes seja tão dolorosa. Mas daí a achar que tem alguma opinião sobre o que está sendo produzido, e como tudo está sendo produzido, é outro papo. Enquanto isso, vamos de petições online. Seja para remover o showrunner de The Walking Dead (por ele ter aprovado a morte de um dos protagonistas), seja para forçar o estúdio responsável por Liga da Justiça a investir mais alguns milhões de dólares e lançar a versão de Zack Snyder do filme (acreditem, crianças, não tem como melhorar aquele desastre).
O papel do fã – se é que existe algo assim – é curtir, acompanhar e, caso não goste do que esteja vendo, fazer a escolha com a própria carteira. Seja trocando o canal, seja não indo ao cinema. Para isso, claro, ele precisa admitir que não é dono de nada, que não faz parte do processo criativo, que é plateia. E aí entramos numa alça do infinito que dificilmente chegará ao fim. Ao menos no caso da petição online para retirar Os Últimos Jedi do cânone oficial de Star Wars, a vergonha alheia bateu forte, e o "fã" responsável pela coisa toda pediu desculpas depois que a coisa saiu de proporção, disse estar sob efeito de medicamentos para dor depois de um acidente que o deixou temporariamente numa cadeira de rodas e que tudo foi resultado de raiva, frustração e falta de grana para pagar as despesas médicas. "Eu não consegui ajuda para pagar minha cirurgia e essa petição consegue tanta atenção?", disse Henry Walsh, espantado com o alcance de seu pedido. "Quantas pessoas por aí precisam de ajuda de verdade e não conseguem esse tipo de atenção?" Ele tem razão. Walsh continua não gostando de Os Últimos Jedi. Mas, no fim das contas, é só um filme.
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