Batman: 30 anos depois, filme ainda é uma aula de como vender HQs no cinema
"Eu lembro bem do Batman de Tim Burton. Primeiro, foi um desenho do Jerry Ordway, responsável pela quadrinização do filme, publicado em preto e branco na extinta Aventura & Ficção. Depois, os trailers, alguns segundos exibidos em noticiários, o símbolo preto e dourado do morcego, onipresente. Batman foi um triunfo do marketing, o primeiro blockbuster da era moderna construído em cima de uma marca e vendido como produto. Funcionou. Maior sucesso do ano nas bilheterias (nos EUA, ficando atrás de Indiana Jones e a Última Cruzada em números globais), a aventura dirigida por Tim Burton trazia uma esteira de polêmicas – a começar por Michael Keaton, nunca bem visto pelos fãs no papel de Bruce Wayne/Batman. Para mim, ainda a tradução mais perfeita do herói no cinema."
Foi assim que, cinco anos atrás, eu comecei um texto sobre o fenômeno pop que então completava 25 anos. Cá estamos nós, três décadas nas costas, e Batman continua sendo a maior referência não só de como traduzir um personagem de histórias em quadrinhos para os cinemas, mas também em como vender um produto de nicho para as massas. Ainda sob a sombra de Vingadores: Ultimato, que neste fim de semana mordiscou os calcanhares de Avatar e nutre a esperança de tomar seu lugar como maior bilheteria da história, fica mais claro como Tim Burton teve uma leitura precisa do espírito do tempo ao criar uma aventura em sintonia com o desejo do público. Espera, risca isso: Batman não só traduziu o zeitgeist, ele criou essa demanda, tornando-se o produto que o consumidor sequer sabia que precisava. Não foi um tiro no escuro, claro. O estúdio sabia estar sentado numa mina de ouro, um produto corporativo com potencial para extrapolar a experiência no cinema. Executar a ação, por outro lado, demandou passos arriscados, confiança na visão de um diretor novato e, claro, um punhado de sorte.
Fazer filmes, afinal, requer uma engenharia complicada. É certo que as histórias em quadrinhos entregam novas aventuras do Homem-Morcego em generosas doses mensais. Ideias não faltam. Mas um gibi ruim pode se recuperar com uma saga bacana quase que imediatamente. Um filme ruim, por outro lado, emperra uma série de engrenagens que pode colocar em risco a viabilidade de um produto. Por mais que o Batman fosse um personagem popular, sua percepção pública ainda remetia à série de TV dos anos 60, uma galhofa lançada em meio à Guerra do Vietnã que tinha a mesma função de quase toda a programação televisiva da época: manter o americano médio feliz e anestesiado. Quase duas décadas depois, uma nova geração de fãs, alimentados com uma revolução do herói nos gibis, não toleraria de forma alguma que o Cavaleiro das Trevas voltasse a ser piada. E isso ia além dos fãs: Batman, como produto, precisava ser levado a sério.
Nos quadrinhos, sua mitologia fora modernizada nos anos 70 em uma série de histórias assinadas por Denny O´Neil e Neal Adams. Na década seguinte, a revolução foi ainda mais radical graças a três revistas: Batman – O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller; Batman: Ano Um, de Miller e David Mazzucchelli; e A Piada Mortal, de Alan Moore e Brian Bolland. Ainda assim, a ideia de levar o herói de volta aos cinemas, que ganhara força com o lançamento de Superman, O Filme em 1978, andava emperrada pelo temor do produtor Michael Uslam em errar o tom da aventura. Com os direitos do personagem em mãos, e disposto a fazer uma aventura sombria e empolgante, ele encontrou executivos e diretores dispostos a repetir o tom satírico da série dos anos 60. Quando a dupla de produtores Jon Peters e Peter Guber entrou em cena, no começo dos anos 80, com um roteiro assinado por Tom Mankiewicz (que escreveu boa parte de Superman), o projeto tomou tração. Mas faltava um diretor com a visão certa para traduzir um Batman moderno e empolgante.
As Grandes Aventuras de Pee-Wee, terminou como um grande sucesso para a Warner, faturando 40 milhões de dólares em 1985. Seu diretor, um jovem de 27 anos com talento para lidar com personagens estranhos em mundos de fantasia, chamou a atenção do estúdio, que o contratou no ano seguinte para dirigir Batman. Até então, Tim Burton não era entusiasta de quadrinhos, mas tinha fascínio pela figura sombria do herói. Ele se livrou do roteiro de Mankiewicz e começou a trabalhar em uma nova visão para a aventura. Para observar como ele lidaria com um orçamento maior, a Warner bancou seu Os Fantasmas Se Divertem, que também se converteu em sucesso em 1988 e aumentou a confiança em Burton. Aumentando ainda mais as apostas, o diretor fechou com Jack Nicholson para o papel do Coringa, e logo depois cravou Michael Keaton, seu Beetlejuice, para o papel de Batman. A produção se mudou para Londres e, com então absurdos 50 milhões de dólares de orçamento, o filme começou a tomar forma.
A escolha de Keaton, que o tempo mostraria ser o melhor intérprete do Batman no cinema, enfureceu os fãs, que o percebiam como comediante. De olho no investimento, o estúdio consolidou a confiança em Tim Burton ao iniciar uma campanha sem precedentes para o lançamento do filme. É nesse ponto que Batman deixou de ser mais um filme no calendário da temporada do verão americano, para se tornar um verdadeiro fenômeno midiático. E tudo começou com o logo do herói, levemente redesenhado pelo designer Anton Furst, que estampou o primeiro poster, distribuído um ano antes da estreia. No Natal de 1988, um primeiro teaser foi colocado nos cinemas, mostrando a materialização da visão de Burton, sua Gotham City imponente, Nicholson alucinado como o Coringa, um novo e potente batmóvel, e Keaton como Batman, trajando um uniforme que trocava o tecido colante colorido por uma armadura negra. Pouco antes da estreia, o mundo estava tomado pela batmania, com o filme sendo parte de um movimento que envolvia quadrinhos, brinquedos e todo tipo de produto que pudesse ser ilustrado com o símbolo do morcego. No Brasil o filme chegou quatro meses depois, em outubro, empurrado pelo sucesso colossal já em sua esteira – eu lembro do dia da estreia, em que eu emendei quatro sessões, seguidas nas semanas seguintes de dúzias de outras visitas ao cinema. Batman fechou sua carreira com 411 milhões de dólares em caixa; o estúdio e seus parceiros, porém, venderam mais de 750 milhões em mercadorias. Nada mais no cinema seria o mesmo.
Se hoje é comum os grandes lançamentos adotarem o marketing maciço como estratégia de lançamento, fazendo com que o público praticamente se sinta culpado se não conferir cada filme em seu fim de semana de estreia, três décadas atrás Batman surgiu como uma aberração. O próprio Burton na época se mostrou incomodado com tamanha exposição, já que, como autor, ele não queria estar associado a um gigante corporativo de muitas faces. O tempo, claro, mostrou-se generoso com sua obra. A aventura gótica é uma explosão de estilo, revelando um artista de gosto refinado e fervendo em referências para criar seu filme. É curioso ressaltar o artificialismo proposital impresso em Batman, ambientado em uma Gotham City lúdica que surge como uma cidade contida em um globo de cristal. Longe de criar um filme de ação, Burton mirou em uma narrativa sobre a busca pela identidade, sobre os vários níveis da vingança, sobre dois lados da loucura entrando em choque: para o diretor, Batman e o Coringa sempre foram dois sujeitos perturbados, que lidaram com tragédias pessoais ao alimentar sua própria demência. Nesse sentido, conectar a origem dos dois personagens – o que na época foi considerado heresia por fãs mais exaltados – faz total sentido, dando peso à narrativa e sentido ao combate final.
Ao contrário de boa parte das adaptações de super-heróis dos quadrinhos, ancoradas em um momento específico no tempo, Batman envelhece como vinho justamente por não se colocar em uma época específica. Gângsters dos anos 30 interagem com um vigilante que emprega tecnologia avançada; a arquitetura fascista e imponente, que transpira controle, entra em choque com o caos urbano e a violência desmedida. É um mundo de sombras, que só poderia existir em uma criação de fantasia, habitado por pessoas perpetuamente presas à escuridão. Curiosamente, quando conversei com Burton em 2012, ele mencionou o contraste de sua obra com a trilogia O Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan, que trouxe um retrato realista e violento para o universo do Homem-Morcego. "Quando lancei Batman todos diziam que eu havia criado uma aventura de super-heróis muito sombria", comentou, com um sorriso. "Comparado aos novos filmes, eu diria que até peguei leve."
Tim Burton voltaria ao mundo do Homem-Morcego três anos depois com Batman – O Retorno, um filme que trouxe sua assinatura ainda mais evidente. Mais sexy, mais perturbado e plasticamente irretocável, a aventura trouxe Michael Keaton de volta, ao lado de Danny DeVito (o Pinguim) e Michelle Pfeiffer (a inesquecível Mulher-Gato). Com maior liberdade, ele criou um verdadeiro filme de terror gótico, mergulhando ainda mais fundo na ambiguidade de seus personagens. Por duas vezes, o diretor ajudou a escrever as regras que, três décadas depois, o cinema continua usando para criar adaptações bem sucedidas de personagens de histórias em quadrinhos: uma avalanche de marketing servindo como suporte para a visão de um cineasta único, com o estúdio servindo como guia para não perder o rumo de seu produto corporativo. Foi assim com X-Men. Foi assim com Homem-Aranha. Foi assim com Batman Begins, com Deadpool e ainda funciona assim com todo o Universo Cinematográfico Marvel. Se o cinema pop hoje parece um grande comercial, devemos isso a Batman. Um fenômeno que, para o bem e para o mal, alterou o modo de ver e de fazer filmes para sempre.
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