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Danny Boyle: "A nostalgia é um refúgio em momentos de grande incerteza"

Roberto Sadovski

29/08/2019 06h25

Yesterday encontra o diretor Danny Boyle em um "modo de batalha" inusitado. Responsável por filmes intensos como o neo clássico Trainspotting, o apocalipse zumbi Extermínio, o premiado Quem Quer Ser um Milionário? e o sufocante 127 Horas, ele aqui opta por uma celebração da música dos Beatles que emoldura uma comédia romântica doce e emocionante. Depois de flexionar músculos artísticos diferentes ao comandar a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres em 2012, o diretor alternou produções modestas com filmes de grife, emendando a brilhante biografia Steve Jobs com a primeira continuação de sua carreira, T2 Trainspotting. Até flertar com o cinema de grandes blockbusters ao desenvolver por um ano a próxima aventura de James Bond. Liberdade, entretanto, é inegociável para Danny Boyle, como você confere no pape a seguir.

Danny, você mencionou que Yesterday seria uma celebração dos Beatles. O cinema tem recebido diferentes festas musicais, como Bohemian Rhapsody e mais recentemente Rocketman. O que existe nessa mistura de música, cinema e nostalgia que tem deixado as plateias ávidas por mais?
Eu acho… Eu não sei. Acredito que existe de fato um componente de nostalgia envolvido. E acho que tem a ver com um momento – e eu sei que é meio lugar comum – de enorme incerteza, não só aqui na Inglaterra mas também ao redor do mundo. Muitas mudanças acontecendo, especialmente instabilidade política, um clima de incerteza que não sabemos se é permanente ou um soluço. Mas as pessoas inevitavelmente buscar se agarrar a algo que elas conhecem. Algo que seja maravilhoso, e se existe algo que conecta esses três filmes são canções absolutamente espetaculares. Espetaculares! E não podemos esquecer do ABBA com Mamma Mia!, que foi um sucesso tremendo antes de Bohemian e é essencialmente um grande karaokê. Além disso, também existe a consequência inevitável do cinema se reinventar, porque para atrair as pessoas ao cinema é preciso de algo que não esteja disponível na TV. Isso faz com que estes filmes surjam como eventos – não como os filmes da Marvel, mas ainda assim eles são como um evento, quase como um show ao vivo. Especialmente Bohemian e Rocketman, que traz literalmente reproduções de shows. Em nossa versão a diferença é que Himesh (Patel) se torna o artista. Então é a combinação de nostalgia, coisas que são familiares e o fato de o cinema ter de criar algo especial para se manter essencial ante tanto material que a TV traz.

Eu sempre levanto a questão da sobrevivência do cinema ante esses grandes blockbusters, como Marvel, Aladdin ou Detetive Pikachu. Às vezes filmes menores como Fora de Série simplesmente desaparecem em meio aos gigantes. Existe alguma fórmula para levar o público ao cinema para assistir a filmes que não são candidatos a arrasa-quarteirão?
Eu acredito que sim. Sabe, no fim estes filmes são ancorados nas performances. É o ator que importa. É óbvio que atores são a chave de todo filme, mas eu acho que nas produções da Marvel eles são de certa forma intercambiáveis. Fora isso a plateia responde a uma performance, é onde está a conexão emocional, e isso se mostra mais verdadeiro quando um ator se transforma em Freddie Mercury ou Elton John. É um tipo específico de representação, visualmente identificável. O caso de Yesterday não era tão simples, porque não queríamos fazer uma biografia, e sim algo mais específico. É curioso observar se vamos conseguir habitar este mesmo mundo.

Jack Malik (Himesh Patel) conquista o mundo com as canções dos Beatles

Que tipo de ator você procurava para protagonizar Yesterday, e por que terminou escolhendo Himesh Patel?
A procura foi intensa, conversamos com muita gente. Sendo honesto, embora eu tenha conversado com alguns atores extremamente talentosos, que cantavam as músicas divinamente – porque esse era o teste, além de atuar eles precisavam cantar algumas músicas. Então chegou um ponto que duvidamos se o processo ia funcionar, eram muitas músicas, cada um arriscando cerca de quinze canções. Então Himesh se apresentou, cantou e foi como uma brisa da primavera. (risos) Foi estranho, nós ficamos com o queixo no chão, imaginando o que ele fazia de tão diferente em sua performance. E no fim não havia nada diferente, ele foi preciso ao cantar as músicas originais sem mudanças… e ainda assim soou estranho e familiar ao mesmo tempo. E era o ingrediente que a gente buscava, porque os personagens na história não conheciam nenhuma das canções, mas ainda assim precisavam expressar alguma familiaridade. Ou seja, eles amavam as músicas porque parecem reconhecê-las. O público obviamente conhece cada uma das músicas, mas elas tinham de soar estranhas e também familiares.

Yesterday não é apenas uma celebração dos Beatles, mas também uma celebração do amor. Quando você escolhe atores para interpretar um casal, e a química é algo que simplesmente precisa ser natural, e ela está lá com Himesh e Lily James. Você precisa também testar os dois juntos, como funciona o processo?
Na verdade eu nunca precisei fazer assim, sempre confiei em meu instinto ao observar as performances individuais. Eu nunca peço para que eles busquem esse crédito mútuo, eu os escolho pelo que eles são. Até porque eu sou péssimo para julgar química! (risos) Acredite, bons atores podem fingir qualquer coisa, e eles podem enganar qualquer um, inclusive o diretor. Então a química termina sendo uma consequência de como eu conduzo cada cena.

Danny Boyle e o roteirista Richard Curtis no set com Himesh Patel e Lily James

Eu acho fascinante em sua carreira o fato de você nunca se colocar em uma caixa. Você dirigiu terror e ficção científica, comédias românticas e biografias. Então, o que o atrai a cada história?
Olha, estou trabalhando agora em algo que me fisgou em uma frase, a ideia da história. Outras vezes simplesmente respondo a um roteiro. Eu li o roteiro de Richard Curtis para Yesterday e a reação foi instantânea. Eu confio nessa reação instintiva mais do que uma reação ponderada ao longo do tempo, quando outras pessoas interferem no processo, quando os agentes entram em cena, quando a conversa passa a ser em torno de elenco – o que eu acho que é fundamental quando o orçamento é enorme! Mas quando é possível manter o orçamento mais apertado o bônus é a liberdade que isso traz. Com o meu histórico combinado com o de Richard conseguimos escolher Himesh como protagonista. Porque já temos combustível para alavancar a produção, seja com as canções dos Beatles, além de mim e de Richard, seria o bastante para disparar o filme. Ajuda muito conseguir Lily (James) e também Kate McKinnon. Mas tudo isso é consequência daquele instinto inicial, de ler o texto e querer fazer. Sem falar que essa leitura inicial é o mais perto que eu vou chegar do que a platéia vai receber quando assistir ao filme – e o que eles assistem é a história completa. E é mais ou menos isso que um diretor sente quando lê um roteiro, esse sentimento que se sustenta por mais ou menos um ano antes de iniciar a produção. E a esperança é que a platéia sinta o mesmo quando assistir ao produto completo.

Essa liberdade em manter sua visão e sua liberdade é o que te mantém longe de grandes orçamentos e de grandes franquias e filmes-evento?
Eu sempre tento manter o custo baixo. Um filme tem tantas partes em sua engrenagem que é muito fácil tudo se agigantar e de repente o custo se torna absurdamente alto. Daí a pergunta passa a ser " como vamos recuperar esse investimento?" Então é prudente estabelecer um limite e dar o exemplo, deixando claro quanto cada um vai receber por seu trabalho, então todos ficam cientes dos parâmetros reais da produção. O resultado pode excedê-los, o que seria um ótimo bônus para todo mundo, mas se não atingir aquela meta também não vai quebrar ninguém. Acho que trabalhar com o que temos é algo simples e também muito importante. Essa clareza permite mais riscos – riscos que não podemos correr com um orçamento maior. Até podemos tentar, mas existem outras forças que desconfiam do perigo e cobram estes riscos depois. Quando o orçamento é modesto, essas forças permitem que se corra mais riscos, como nas decisões de elenco.

Danny Boyle dirigiu Daniel Craig como James Bond e a Rainha Elizabeth (!!!) na abertura da Olimpíada de Londres em 2012

Você quase dirigiu o próximo James Bond, que eu acredito ser justamente o tipo de filme em que é difícil equilibrar…
(dá de ombros) Olha aí o que você fez! (risos) É o projeto perfeito para correr alguns riscos mas o custo é tão astronômico que obviamente eles não querem seguir a mesma jornada que você. Então a decisão sensata é cada um seguir seu caminho.

Acho que os melhores filmes são justamente aqueles que pensam fora da caixa e correm os maiores riscos.
Eu concordo contigo. Mas obviamente, do ponto de vista dos estúdios, você também adoraria os riscos? Essa é a perspectiva deles, "você correria riscos com seu dinheiro?" (risos)

Mas às vezes o estúdio entende os riscos e aposta da mesma forma, resultando muitas vezes em grandes sucessos. É raro, mas acontece, certo?
Exato, e um deles acabou de completar vinte anos e se chama Matrix. Foi um risco, claro, já que ninguém apostava nessa estética que vem de histórias em quadrinhos, especialmente vinte anos atrás! Foi o filme que mostrou que essa estética era executável, e Matrix começou todo esse movimento. Eu tenho um amigo, o coreógrafo Kenrick Sandy, que planeja criar um balé com aquela mesma energia, dança moderna, no palco. E eu filmaria a performance.

Extermínio foi o precursor de muitos filmes pós-apocalípticos modernos

Acho que você deve ouvir isso sempre, mas existe alguma possibilidade de você retornar ao mundo de Extermínio?
(risos) É interessante, Alex (Garland) teve uma ideia brilhante, mas que nunca teve a tração necessária para caminhar. E eu não sei como ele se sente em relação a isso agora, já que ele tem se mantido ocupado finalizando sua série de TV (a ficção científica Devs). Então está no limbo. Mas sua ideia era incrível…. É interessante como tantos novos filmes seguem o mesmo caminho, como Bird Box, um futuro pós-apocalíptico. A construção de mundos assim é fascinante.

Quem Quer Ser um Milionário? parece compartilhar o mesmo DNA de Cidade de Deus, o filme de Fernando Meirelles. Você os enxerga como filmes-irmãos, que abordam temas similares sob uma luz diferente?
É interessante, eu adoro Cidade de Deus e com certeza eu aprendi com ele a forma de filmar. Pode soar muito técnico, mas existe um modo de abordar uma filmagem em uma comunidade como aquela. Se você agir de maneira honrada – e isso não tem nada a ver com dinheiro, e sim com coração! – então essa comunidade vai responder de maneira positiva. Se alguém entra com o objetivo de explorar, é inevitável que seja expulso. Foi isso que eu observei ao filmar em Mumbai, foi isso que eu aprendi com Cidade de Deus. E também com minha experiência ao fazer A Praia, em que fizemos de forma diferente e chegamos com muito dinheiro, o que distorceu completamente o projeto original. Então eu acho que temos de aprender com nossas experiências e também com pessoas que fizeram um trabalho melhor.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.