Roberto Sadovski http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Thu, 20 Feb 2020 06:47:20 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Dolittle: Sério que esse é o rumo da carreira de Downey Jr. pós-Marvel? http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/20/dolittle-serio-que-esse-e-o-rumo-da-carreira-de-downey-jr-pos-marvel/ http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/20/dolittle-serio-que-esse-e-o-rumo-da-carreira-de-downey-jr-pos-marvel/#respond Thu, 20 Feb 2020 06:47:20 +0000 http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/?p=11218

Dolittle é um filme confuso, mal executado, que deve agradar tão somente crianças muito pequenas que podem rir com piadas de pum. É também uma escolha curiosíssima para Robert Downey Jr. iniciar uma nova fase em sua carreira, depois de mais de uma década como astro global graças a seu trabalho como Tony Stark no universo cinematográfico Marvel. Em teoria não seria uma escolha ruim, e sim uma bem vinda mudança de rumo.

Dr. Dolittle, personagem infantil criado por Hugh Lofting em 1920, faz parte do imaginário lúdico ianque graças a uma série de quatorze livros publicados até 1952, anos depois da morte de seu autor. O médico da Era Vitoriana capaz de falar com animais é leitura obrigatória constantemente adaptada nos palcos, em rádio, na TV e no cinema. Depois de um arco completo como o Homem de Ferro por uma década, encerrando sua narrativa em Vingadores: Ultimato, o desejo de Downey em pegar leve (e, talvez, iniciar uma nova série) era compreensível. Mas as coisas deram errado. Muito errado.

Boa parte da narrativa do novo filme é adaptada do segundo livro publicado por Lofting, The Voyages of Doctor Doolitle, e mistura aventura épica, caça ao tesouro e um subtexto sobre encontrar seu objetivo no mundo que não pesa a mão para ser melhor absorvido pela petizada. A natureza da história, entretanto, deixa ainda mais estranha a escolha de Stephen Gaghan para tocar o projeto. Roteirista de Traffic e diretor de Syriana, seu trabalho inclinava-se para contos sobre zonas de conflito e histórias que circulavam temas contemporâneos. Talvez exista no personagem John Dolittle uma sugestão do tipo de pessoa fragmentada que possa chamar a atenção de Gaghan, mas é aprofundar demais uma teoria em um personagem que não é assim tão complexo.

Dolittle coloca as cartas na mesa em um prólogo em animação que termina sendo o melhor do filme, explicando como o médico abraçou sua habilidade em falar com os animais, tornando-se sensação na terra da Rainha Victoria, que lhe concedeu um santuário para atender sua clientela peculiar e mantê-los à salvo. A tragédia surge quando sua esposa, a exploradora Lily, desaparece em um naufrágio, fazendo com que Dolittle corte seus laços com a humanidade e isole-se em sua mansão cercado dos únicos amigos que lhe restam: os bichos.

Harry Collett cercado pelos verdadeiros astros de Dolittle

Depois deste pequeno prólogo, o filme apresenta o verdadeiro protagonista da aventura: Stubbins (Harry Collett, desesperadamente precisando de direção), que atira acidentalmente num esquilo e invade o santuário em busca da ajuda de Dolittle. Coincidentemente, ele chega ao mesmo tempo que uma enviada da Rainha, convocando o médico exêntrico para deixar seu exílio e atender a soberana da Inglaterra, que encontra-se acamada por uma doença misteriosa.

Tudo é desculpa para Dolittle finalmente espantar seu torpor e partir em uma viagem náutica em busca da mítica Árvore do Édem, cujo fruto pode curar qualquer doença, e que fazia parte da mesma jornad que vitimou sua cara-metade anos antes. Ah, o vilão nada sutil é um médico invejoso (Michael Sheen) que pode estar envolvido em uma trama contra a Rainha e precisa impedir o sucesso de Dolittle a todo custo. E é isso: um pouco de Piratas do Caribe, uma pitada de Crônicas de Nárnia e uma história que, para funcionar, precisa estar ancorada no carisma de Robert Downey Jr. – carisma que, por sinal, ele deve ter deixado guardado em alguma gaveta.

Porque nada explica a total apatia do astro em quase duas horas de filme. É compreensível que Downey não queira repetir nem um traço da personalidade magnética de Tony Stark, mas sua composição para John Dolittle é tão entediante que eu me peguei torcendo para que ele tivesse o mínimo impacto na trama. Cada vez que ele abre a boca e dispara mais uma frase ininteligível (sério, Robert, qual é?!!), o filme afunda um pouco mais. A criançada não vai se importar, já que o atrativo para os pequenos é a coleção de animais em torno do protagonista, uma prole em CGI com mais pulso que todos os humanos em cena.

Dolittle conseguiu atrair um grupo considerável de atores para emprestar a voz aos bichos digitais, da arara Polly (Emma Thompson) ao cachorro Jip (Tom Holland), passando pela ganso Dab-Dab (Octavia Spencer), o gorila Chee-Chee (Rami Malek) e o urso polar Yoshi (John Cena). A animação dos bichos é mais bem cuidada e convincente do que a fauna estilo Discovery Channel de O Rei Leão, e apostam em um humor bastante pueril para manter a bola em jogo. Tentar, entretanto, não é conseguir.

Robert Downey Jr. encara Antonio Banderas: ao menos alguém se divertiu com o filme

O motivo pode estar nos bastidores conturbados da produção. A falta de familiaridade de Gaghan com cenários e criaturas digitais logo ficou evidente quando as primeiras exibições-teste do filme foram um desastre, com piadas sem graça e narrativa sem ritmo. O diretor Jonathan Leibesman (responsável pelo reboot de As Tartarugas Ninja) supervisionou a filmagem de cenas adicionais, enquanto Chris McKay (Lego Batman) tentava reescrever o roteiro para melhorar humor e estrutura.

Essa colcha de retalhos está em cada frame: por vezes o filme parece incompleto, com a narração de Emma Thompson claramente tapando rombos no roteiro ou compensando sequências nunca filmadas. Quando Downey e Collett precisam para em uma ilha comandada por um criminoso lendário (Antonio Banderas ao menos parece se divertir), a narrativa engole cenas inteiras. É quando Dolittle comete o maior pecado de um filme: em vez de mostrar a ação, o que é básico em uma mídia audiovisual, ele prefere contar o que aconteceu, deixando a plateia coçando a cabeça. É bizarro, é amador e é imperdoável em um filme desse porte.

A carreira de Robert Downey Jr. desde que Homem de Ferro o resgatou do limbo em 2008 foi estelar, embora monotemática. Claro, ele cravou uma indicação ao Oscar por seu trabalho em Trovão Tropical e ainda disparou uma nova série com dois Sherlock Holmes (um terceiro está a caminho). Tirando um respiro com o drama O Juiz, porém, seu trabalho foi mesmo criar um arco completo para Tony Stark, realizado em dez filmes para a Marvel. Livre de seus demônios, milionário, pai de família e respeitado por seus pares, Downey tinha total liberdade para escolher qualquer rumo, certo de que o público o seguiria.

Não foi bem assim. Dolittle naufragou nas bilheterias americanas, sinalizando uma jornada tortuosa para Robert Downey Jr. longe do universo mais lucrativo da história do cinema. O personagem de Hugh Lofting, por sua vez, continua sem uma adaptação para o cinema digna de sua importâcia. A versão que Richard Fleischer dirigiu em 1967 é uma bagunça. Quando sua melhor tradução para a tela grande é uma comédia boboca estrelada por Eddie Murphy, talvez seja mesmo a hora de fechar o consultório.

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Robert Pattinson vem aí: Por que precisamos de mais um filme do Batman http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/17/robert-pattinson-vem-ai-por-que-precisamos-de-mais-um-filme-do-batman/ http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/17/robert-pattinson-vem-ai-por-que-precisamos-de-mais-um-filme-do-batman/#respond Mon, 17 Feb 2020 18:25:34 +0000 http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/?p=11205

Em Aves de Rapina, a anti-heroina Arlequina cita o bilionário Bruce Wayne algumas vezes, e menciona o Batman outras tantas. Vai ficar no gogó: no universo do filme com Margot Robbie, o Homem-Morcego era a “versão Ben Affleck”, que pendurou as chuteiras depois dos equivocados Batman vs. Superman e Liga da Justiça. Não existe mais. Improvável, portanto, que o Cavaleiro das Trevas dê as caras também na continuação The Suicide Squad, que o diretor James Gunn está preparando para ano que vem.

No recorte apresentado em Coringa, a existência de um Batman também parece pouco provável – ah não ser que o herói finalmente enfrente seu nêmesis quando este for um septuagerário. O fracasso de um universo compartilhado DC, entretanto, abriu espaço para outra releitura do personagem, agora sob a tutela do diretor Matt Reeves: The Batman traz Robert Pattinson como protagonista, que teve seu visual revelado em um teste de câmera disponibilizado pelo cineasta. “Peraí”, diz o leitor. “Será que não é muito cedo para mais um filme do Batman?” Então. Não é. Segue o fio.

Criado em 1939, o Batman completou oito décadas de existência justamente por sua capacidade de ser reinventado. Nesse tempo, o herói imaginado por Bob Kane e Bill Finger atravessou guerras, revoluções culturais, encarou sua obsolescência e renasceu inúmeras vezes. Tirando o verniz imposto a cada geração de artistas que escrevem suas aventuras, o conceito básico continua o mesmo: depois de ver seus pais assassinados por um criminoso comum, um órfão jura dedicar sua vida a combater o crime, impedindo que o que aconteceu a ele se repita com outras pessoas.

A partir daí, a mitologia do Batman teve centenas de interpretações, algumas rasas, outras mais densas. E não existe uma visão “errada”: o herói em um contexto de ficção científica nos quadrinhos dos anos 50 é tão correto quanto o bufão da série de TV dos anos 60 ou o super-herói atormentado na animação dos anos 90 ou o vingador sombrio e realista do cinema do novo século. Um personagem com uma história tão rica, protagonista de histórias tão diversas, é prato cheio para ser reinterpretado pelo artista certo.

Christian Bale é o ideal de Batman para o fã moderno

Robert Pattinson nao parece em nada com o Batman que acostumamos a ver no cinema – ao mesmo tempo que é imediatamente reconhecível como o herói. Não é a primeira vez que os fãs coçam a cabeça. A ideia de um Batman envelhecido combatendo o crime parecia absurda até Frank Miller escrever O Cavaleiro das Trevas nos anos 80. Colocar um ator conhecido por comédias soava heresia na virada para os anos 90, mas Michael Keaton mostrou-se um dos intérpretes mais sólidos do herói nas mãos de Tim Burton. Batman em um relacionamento sério com a Mulher-Gato? Soa como bobagem, mas o roteirista Tom King transformou essa premissa em uma das narrativas mais interessantes para o Homem-Morcego nos quadrinhos modernos. A reinvenção mantém o herói atual, sempre em sintonia com o zeitgeist, sem nunca perder seus componentes básicos quando encontra-se nas mãos de artistas de talento.

É óbvio que ainda é muito cedo para cravar qualquer veredito sobre The Batman. Os detalhes da trama devem ser o segredo mais bem guardado entre as paredes da Warner. O que sabemos é que Matt Reeves escalou um elenco curioso. Colin Farrell seria provavelmente o último ator que poderiamos imaginar na pele de Oswald Cobblepot, o Pinguim. Paul Dano é uma opção genial como o Charada. Zoë Kravitz tem potencial para ser a Mulher-Gato mais icônica desde Michelle Pfeiffer. Reeves ainda colocou Jeffrey Wright, Peter Sarsgaard, Andy Serkis e John Turturro nessa mistura encabeçada por Robert Pattinson.

Ele aponta um caminho diferente do que vimos nas mãos de Michael Keaton, de Val Kilmer e George Clooney (que fizeram versões mais cômicas do herói), de Christian Bale (talvez a régua pela qual os Batmen do cinema serão medidos no futuro próximo) e Ben Affleck (o ator certo nos filmes errados). É curioso observar como os fãs dissecaram os poucos segundos de Pattinson como Batman com fervor quase religioso, apontando inspirações malucas para o traje (mezzo o game Arkham Knight, mezzo o gibi Gotham by Gaslight), com sua máscara de costura aparente e o símbolo do morcego supostamente forjado com a arma que matou seus pais (reflexo de uma história recente, de Kevin Smith, publicada em Detective Comics #1000).

Ben Affleck acertou no visual mas desapareceu em dois filmes ruins

Acima de tudo, The Batman representa uma reviravolta nos planos da DC no cinema. Os executivos fizeram as pazes com o fracasso de seu universo expandido e não o abandonaram – Aves de Rapina e The Suicide Squad habitam o mesmo mundo de Batman vs Superman ou Shazam!, mesmo que os filmes não tragam mais a necessidade canina de compartilhar a mesma narrativa. Coringa mostrou que os personagens da editora podem ser representados em aventura-solo que se mostram extremamente populares. Pode parecer pouco tempo, pode ser estranho um novo Homem-Morcego chegar ao cinema com a imagem de seu antecessor ainda tão presente. Mas o intervalo mínimo entre as novas versões (quatro anos entre Liga da Justiça e The Batman, agendado para o ano que vem) somente reflete a velocidade supersônica em consumir cultura pop da geração do novo milênio, em que novidades raramente se sustentam por mais de uma temporada.

Até porque entregar uma outra versão do Cavaleiro das Trevas não é nada que os quadrinhos não façam constantemente há oito décadas. Tampouco é uma prática que não tenha sido experimentada constantemente por diferentes personagens em diferentes plataformas nas mãos de diferentes criadores. A arte é um reflexo do real, e o Batman é um dos raros casos de propriedade intectual que consegue encontrar seu chão mesmo em versões radicalmente diferentes. Talvez por isso, consegue ditar os rumos da cultura pop em seu rastro. Talvez por isso, o mundo do entretenimento preste tanta atenção. Nem precisava de tanto: é o Batman!

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Já assistiu a Parasita? Então conheça outros filmes do gênio Bong Joon Ho http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/13/ja-assistiu-a-parasita-entao-conheca-outros-filmes-do-genio-bong-joon-ho/ http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/13/ja-assistiu-a-parasita-entao-conheca-outros-filmes-do-genio-bong-joon-ho/#respond Thu, 13 Feb 2020 06:54:10 +0000 http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/?p=11188

Já faz quase uma semana em que vivemos num mundo onde o sul-coreano Parasita ganhou o Oscar de melhor filme. Um mundo melhor, portanto, mesmo com as trevas da ignorância sempre à espreita. Nunca é demais ressaltar que a vitória dessa obra prima moderna deve-se, entre outros fatores, à política pública audiovisual robusta em vigor na Coreia do Sul desde meados dos anos 1990: foi quando os cinemas foram tomados completamente por um blockbuster americano, e o governo tomou medidas depois da gritaria dos cineastas locais.

A produção cultural, pilar da economia criativa, ganhou o aditivo de incentivos, da adoção de cotas, um fundo setorial específico e investimento em material humano, ancorando a criação de produtoras e colocando dinheiro para que o mundo pudesse prestar atenção no cinema do país. Hoje, uns bons 25 anos depois, a produção local ocupa quase 60% das salas (deixando os pálidos 2% dos anos 1990 para a história), funciona como uma indústria invejável e gera gênios como Bong Joon Ho.

Não é apenas seu nome que enfeita o cinema coerano contemporâneo. Chan Wook Park escancarou as portas do cinema sul-coreado para o mundo quando o espetacular Oldboy foi premiado em Cannes em 2003 – o filme é parte de uma trilogia que inclui Mr. Vingança e Lady Vingança, obras que foram seguidas de outras pérolas como Sede de Sangue, Segredos de Sangue (seu primeiro filme em língua inglesa) e o excepcional A Criada (que entrou em minha lista de melhores filmes de 2016).

Jeen Woon Kim, por sua vez, mostrava talento excepcional desde seus primeiros trabalhos, mas estourou com o terror sobrenatural Medo (título tolo que A Tale of Two Sisters ganhou por aqui), que me deixou com pesadelos por semanas. Recusando-se a ser colocado em uma caixa, Kim fez uma homenagem ao western spaghetti com o espetacular Os Invencíveis, voltou aos arrepios com o suspense Eu Vi o Diabo, e fez sua estréia no cinemão ianque dirigindo Arnold Schwarzenegger (em seu primeiro papel como protagonista depois de deixar a política) no divertido O Último Desafio.

Parasita, o melhor filme de 2019, precisa ser visto no cinema!

O cara do momento, porém, é Bong Joon Ho. Ele deixou a festa da Academia com uma coleção de Oscar (além da estatueta de melhor filme, ele ainda garfou melhor direção, roteiro original e filme internacional), fez os melhores discursos e ampliou a boa vontade com sua obra. Se você ainda não assistiu a Parasita, nada tema! O filme está voltando aos cinemas em grande estilo, ampliando em cinco vezes o número de salas de quando foi lançado em novembro do ano passado.

É a oportunidade para ver o melhor filme de 2019 no lugar certo: no cinema. Depois, o melhor é competar a lição de casa e fazer seu melhor papel de arqueólogo para encontrar e assistir aos seis filmes anteriores com a assinatura de Bong: alguns estão disponíveis em streaming ou em mídia física; já outros…. Boa caçada e comece bem seu ano cinematográfico, devorando um recorte bacana do melhor do cinema sul-coreano. Você não quer ficar por fora das conversas, certo?

CÃO QUE LADRA NÃO MORDE (2000)

Logo em seu filme de estreia, Bong Joon Ho mostrou sensibilidade em retratar o lado sombrio de pessoas aparentemente comuns. Nesta comédia dramática, um professor universitário desempregado irrita-se com o barulho de cachorros em seu compromisso e passa a dar sumiço nos bichos. Uma contadora com desejo de ser famosa passa a investigar o caso, em uma história que abraça temos como idosos solitários largados à própria sorte em Seul, desigualdade social e uma certa perversão que permeia a personalidade de cada um de nós.

Um início modesto para um diretor, então com 31 anos, cheio de ideias.

MEMÓRIA DE UM ASSASSINO (2003)

Em seu segundo filme, Bong mostrou versatilidade ao explorar a história real dos primeiros assassinatos em série registrados na Coréia do Sul, ocorridos entre 1986 e 1991. Memória de Um Assassino marcou também a primeira parceria com o ator Kang Ho Song, aqui no papel de um detetive encarregado da investigação dos assassinatos. A inexperiência com métodos forenses ao se deparar com crimes tão brutais faz com que os policiais envolvidos no caso, inclusive um detetive mais jovem enviado pela polícia de Seul, cometam erros primários, colecionando suspeitos escolhidos “no olho”.

A série de erros na solução do caso reflete o desespero dos protagonistas, humanizando de forma inesperada um gênero cinematográfico tão batido como o policial ao adicionar comédia e sátira social à mistura. Um sucesso de público que tem Quentin Tarantino como um de seus admiradores, e também um dos melhores filmes já produzidos na Coréia do Sul.

O HOSPEDEIRO (2006)

O sucesso internacional chegou para Bong com essa mistura de terror, ficção científica, sátira social e filme de monstro. Na superfície, O Hospedeiro é sobre uma criatura que leva uma jovem em seu ataque e as tentativas de seu pai em resgatá-la. Mas o cineasta já havia mostrado seu total desinteresse em abordar assuntos de forma rasa, e cada elemento é tratado com profundidade insuspeita. A começar pela família no centro da trama, ancorada por um sujeito simplista (pense em Forrest Gump, só que interpretado por Kang Ho Song), sua irmã (uma arqueira de nível olímpico frustrada com sua situação atual), seu irmão (ativista político, inteligente e alcoólico) e sua filha, capturada pela criatura monstruosa que emerge do rio.

Em vez de construir o suspense lentamente, Bong faz o monstro surgir da forma mais natural possível, em pleno dia, com as margens do rio lotadas de pessoas em seu momento de lazer – momento este transformado em uma carnificida brutal. Depois deste gatilho acachapante, a trama evolui para a ação militar que tenta eliminar pateticamente a criatura e os esforços de uma família disfuncional em tornar-se, mais uma vez, completa.

O Hospedeiro é uma sátira política nada sutil (o governo é retratado como burocrático e inepto), mas Bong não poupa ninguém com suas lentes, nem mesmo seus protagonistas. Bom, talvez ele poupe o monstro, que é a maior vítima da ação ignorante das autoridades.

MOTHER – A BUSCA PELA VERDADE (2009)

Em seu quarto filme, Bong mais uma vez mostrou interesse pelo terror. Mas não o estilo sobrenatural que dominou parte do trabalho de seus contemporâneos, e sim a devastação causada por uma pessoa a outra. A “mãe” do título é uma viúva sem nome, determinada a provar que seu filho, um jovem com problemas mentais, é inocente de uma acusação de assassinato. Para isso, ela passa a realizar uma investigação totalmente amadora do caso, resultando em momentos do mais puro humor involuntário e ácido.

Quando a trama evolui para um estudo sobre obsessão, o diretor revela camadas sobre pessoas comuns e as coisas horríveis que até os mais inocentes são capazes de fazer para proteger a quem ama. Hye-Ja Kim é absolutamente hipnotizante como a personagem-título, ressignificando a imagem da atriz, até então conhecida na Coréia por seus papéis como o estereótipo matriarcal – aqui transformada em protetora furiosa de seu rebento. A cena final de Mother, quando ela lida com seus pecados no momento em que seu mundo perde o sentido, é devastadora.

EXPRESSO DO AMANHÃ (2013)

A estreia de Bong Joon Ho em um filme de língua inglesa resultou em uma ficção científica distópica que une os temas que marcaram sua carreira (o recorte da desigualdade social, a sátira política afiada, o senso de humor ácido) com o diretor pegando fogo, construindo uma obra visionária, absurda e empolgante. Adaptando uma história em quadrinhos francesa, Expresso do Amanhã é ambientado em um trem deslocando-se velozmente ao longo de todo o planeta. Em 2031, uma catástrofe ambiental causada por cientistas bem intencionados transformou a Terra em um globo gelado inabitável, com o que restou da humanidade habitando o trem em movimento perpétuo.

A máquina tornou-se retrato do pior da humanidade, com os desassistidos confinados à sua extremidade traseira, eternamente alimentando seu motor, e a elite ocupando os vagões à frente, em uma existência dionísica e alheia ao futuro – a “paz” é assegurada por forças paramilitares que obedecem ao “condutor” do trem, habitante solitário do primeiro vagão. Uma rebelião encabeçada pelo personagem de Chris Evans ameaça o equilíbrio tênue dos passageiros, e logo o terrível segredo sobre a natureza do trem – e do destino da Terra – será revelado.

Um filmaço, claustrofóbico e sufocante, prejudicado em seu lançamento pelo ego do distribuidor Harvey Weinstein (Bong recusou-se a editar o filme de acordo com suas instruções), tardiamente redescoberto (eu o coloquei em minha lista de melhores filmes de 2014) e ancorado por um elenco absurdo que inclui Kang Ho Song, Tilda Swinton, Jamie Bell, Octavia Spencer e Ed Harris.

OKJA (2017)

Produzido pela Netflix, Okja é Bong com um dedo nos perigos da devastação ambiental – tema mais atual do que nunca em tempos de queimadas na Amazônia e total descaso governamental com o meio ambiente. Com inspiração clara da obra de Hayao Miyazaki, Bong constroi uma obra que mistura ação e conto de fadas ao contar a história de uma menina que tenta salvar sua melhor amiga das garras de uma corporação multinacional gananciosa (desculpe a redundância).

A “amiga” em questão, porém, é um animal mutante, uma super-porca desenhada geneticamente para ser a resposta à evolução do consumo humano. Em sua jornada, a jovem (interpretada por Seo Hyun Ahn) cruza o caminho de ecoterroristas travestidos de ambientalistas, de um zoólogo travestido de celebridade televisiva (existe um “quê” de Steve Irwin no personagem de Jake Gyllenhaal), e dos CEOs no comando da operação – que são exatamente as figuras sórdidas que aparentam.

Existe em Okja uma tentativa de emular o sentimentalismo de E.T., mas o cinema de Bong Joon Ho é frenético e excêntrico demais para permitir lágrimas fáceis. O choro, quando chega, é pela incapacidade de muitos de nós em nos enxergarmos ao lado da heroína da aventura.

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Oscar faz história (e, pra variar, a coisa certa) com a vitória de Parasita http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/10/oscar-faz-historia-e-pra-variar-a-coisa-certa-com-a-vitoria-de-parasita/ http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/10/oscar-faz-historia-e-pra-variar-a-coisa-certa-com-a-vitoria-de-parasita/#respond Mon, 10 Feb 2020 09:44:18 +0000 http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/?p=11180

Uma vitória de Parasita na cerimônia do Oscar era improvável, mas não impossível. Improvável porque jamais, em mais de nove décadas de história, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas concedeu sua honraria máxima a um filme de língua estrangeira. As apostas, até por conta das escolhas dos sindicatos e de outras premiações, apontavam uma vitória segura de Sam Mendes e seu 1917 – o que seria justo e digno! Mas a maré aos poucos começou a virar a favor do filme de Bong Joon Ho, especialmente ao longo das últimas semanas, em que o diretor coreano e seu elenco eram aplaudidos entusiasticamente de pé pela elite de Hollywood, hipnotizados por uma verdadeira obra de arte em forma de filme. Estava claro que seria uma disputa entre o conflito na Primeira Guerra Mundial, capturado pelas lentes claustrofóbicas de Mendes, e o conflito ainda mais profundo, deflagrado pelo poder econômico e pela desigualdade social, retratado na alegoria de Bong. Ganhar o Oscar de melhor roteiro original (batendo Quentin Tarantino e Noah Baumbach) foi o começo. Depois veio a esperada estatueta de melhor filme internacional. Depois de melhor direção. Finalmente, de melhor filme. Impossível? O Oscar 2020 redefiniu o que isso significa em uma noite incontestavelmente histórica.

Ainda assim, foi uma noite de poucas surpresas, algumas decepções, de belos discursos e de uma festa que, apesar de ameaçar por muitas vezes arrastar o passo, logo pegou fôlego e seguiu sem maiores traumas até o final glorioso. Os quatro atores premiados – Joaquin Phoenix, Renee Zellwegger, Brad Pitt e Laura Dern – já tinham seus nomes gravados nas estatuetas desde sempre. Coringa, filme com maior número de indicações, foi para casa com um solitário segundo Oscar, o de sua trilha sonora, assinada por Hildur Guðnadóttir. Roger Deakins não tinha concorrentes com sua direção de fotografia por 1917. Elton John e Bernie Taupin Foram premiados. Assim como Taika Waititi. Assim como Toy Story 4. Assim como os favoritos em quase todas as categorias técnicas (fui razoavelmente bem em minhas previsões). Não foi desta vez que o Brasil foi premiado com um Oscar: o documentário Indústria Americana levou o prêmio, mas a diretora brasileira Petra Costa cravou seu nome na história da cerimônia e, apesar da polarização alimentada por uma turba de ignorantes, representou o país de maneira exemplar – jamais, em nenhuma premiação artística (ou esportiva, ou social) em qualquer parte do mundo, vi uma campanha negativa promovida pelo presidente de um país contra o representante de seu próprio país. Uma vergonha.

Bong Joon Ho recebe a estatueta dourada das mãos de Jane Fonda…. e faz história!

A sensação foi amplificada pela vitória de Parasita. Para ser bem honesto, não lembro um último vencedor do Oscar ganhando aplausos tão unânimes como o filme de Bong Joon Ho. O próprio entregou discursos humildes, reconhecendo seus ídolos, sem nunca esconder sua admiração por seus pares. Difícil de encaixotar em um gênero, Parasita é um filme que bate pesado na desigualdade de seu país, a Coreia do Sul, escancarando que os diferentes degraus sociais são, muitas vezes, mera questão de ponto de vista. Não alivia para a classe alta, alheia às mazelas de quem vive abaixo de sua renda. Não alivia também para os desassistidos, que não hesitam em entranhar-se na rotina de uma família de classe alta para esquecer, ao menos enquanto puder, da miséria que é rotina no andar de baixo. Seria impensável o governo sul-coreano armar uma campanha, com dinheiro público, para atacar a reputação do filme e de seus criadores. A realidade é outra: na Coreia do Sul a arte é protegida e estimulada, financiada e ensinada, para que o país tenha cada vez mais representatividade no mundo, promovendo liberdade criativa para seus artistas. Não é à toa que o k-pop é um dos estilos musicais que dominam a cena em todo o mundo. Não é à toa que Parasita tenha disparado sua carreira com a Palma de Ouro em Cannes, e agora ganhe a honraria máxima na maior premiação do cinema mundial. Um prêmio, vale salientar, americano. A distância em que o Brasil, hoje, encontra-se do Oscar, só para ficar nesse microcosmo pop, é imensurável.

A maior lição que a Academia mostrou ao mundo é que sua vontade de mudar para melhor é real. Nas semanas que antecederam a premiação, alguns votantes, sob condição de anonimato, deram entrevistas a revistas e sites especializados em cinema, não escondendo sua xenofobia e garantindo que o Oscar não deixaria de falar inglês. A realidade mostrou que eram vozes ínfimas, que não fizeram diferença ante o esforço global da organização em alinhar-se com o pensamento que arte não possui fronteiras. A língua, afinal, sempre foi um obstáculo intransponível no tocante ao Oscar. Eu torci para O Tigre e o Dragão quando Gladiador foi consagrado em 2001. O Artista, vencedor em 2012, era uma produção francesa, embora ambientada na Hollywood do começo dos anos 1930, espelhando o cinema mudo, com seus únicos diálogos recitados em inglês. Amor perdeu para Argo no ano seguinte, mas não era o melhor filme entre os indicados (diria que nem Argo, mas é uma discussão para outro dia). Parasita é o primeiro filme sul-coreano a ganhar o Oscar, e também o primeiro longa falado em outra língua na história a também garfar o prêmio (agora batizado) de melhor filme internacional. O recado é claro: as coisas mudaram. E podem continuar mudando.

“Se eu pintar de dourado e tacar uma cabeça careca vai ficar igualzinho…”

Por fim, depois de anos tropeçando em absurdos (12 Anos de Escravidão jamais será melhor filme que Gravidade ou O Lobo de Wall Street; Spotlight é incrível, mas indigno de ser mencionado na mesma frase de Mad Max: Estrada da Fúria; e nem me deixem começar de novo sobre Green Book….), a Academia escolheu como melhor filme do ano aquele que, de fato, foi o melhor filme do ano. Parasita triunfou sobre uma coleção de talentos que refletiu com louvor a qualidade cinematográfica de 2019. Bong Joon Ho arrancou sorrisos e aplausos sinceros de ídolos como Martin Scorsese (que viu seu O Irlandês sair de mãos abanando mesmo com dez indicações) e mostrou ser demasiado humano ao afirmar que, ganhando ou não, ia beber por um mês (quem nunca?). Pode ser que a indústria cinematográfica encare no futuro essa vitória como um soluço incômodo, e o Oscar volte aos negócios de sempre já ano que vem. Pode ser que o momento de Parasita, de Bong Joon Ho e de toda sua equipe seja apenas isso, um momento. Mas eu prefiro acreditar que não é por aí, e que a cerimônia do último domingo tenha sido sintoma de um sentimento de mudança para um mundo torto, mostrando que o único caminho para todos nós é abraçar a diversidade, abraçar as diferenças, abraçar um mundo longe das trevas. A arte, afinal, salva.

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Bolão Oscar 2020: Tudo pronto para gabaritar a festa da Academia… ou não? http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/09/bolao-oscar-2020-tudo-pronto-para-gabaritar-a-festa-da-academia-ou-nao/ http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/09/bolao-oscar-2020-tudo-pronto-para-gabaritar-a-festa-da-academia-ou-nao/#respond Sun, 09 Feb 2020 08:58:24 +0000 http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/?p=11161

Hoje é noite de Oscar! Ou seja, é noite de fazer um bolão esperto com os amigos e acompanhar os ricos e famosos se auto congratulando. Coisas que podemos esperar para a cerimônia: discursos politizados, choradeira generalizada, aplausos acalorados. É a primeira em muito tempo que todos os indicados ao prêmio máximo são filmes acima da média (ok, um é bacana porém superestimado…), e eu não lembro de outra cerimônia em que os concorrentes ao Oscar de atuação fossem certezas tão sólidas. Não só isso, é um Oscar em que todas as categorias tem um favorito absoluto, deixando a festa levemente previsível… pelo menos é a impressão geral. Mas será que é isso mesmo?

Calma lá, apressados! Embora exista uma certa previsibilidade, especialmente depois de um filme ter dominado os principais prêmios que antecedem a cerimônia da Academia (cofcof1917cofcof), o Oscar é historicamente palco de surpresas – nem sempre agradáveis. Afinal, é um mundo em que Hitchcock, Kubrick, Welles e Altman nunca ganharam a estatueta de melhor direção! O modorrento Crash deu uma rasteira em O Segredo de Brokeback Mountain! O insípido Shakespeare Apaixonado roubou o holofote de O Resgate do Soldado Ryan! Amy Adams ainda não tem um careca para chamar de seu! E, maior dos pecados, o farsante Roberto Benigni foi premiado como melhor ator (por basicamente interpretar a si mesmo no terrível A Vida É Bela) em um ano em que concorriam Edward Norton (A Outra História Americana), Tom Hanks (O Resgate do Soldado Ryan), Ian McKellen (Deuses e Monstros) e Nick Nolte (Temporada de Caça). Fala sério!

A verdade é que o Oscar 2020 pode fazer história. É possível que uma produção sul-coreana seja coroada como melhor filme (será?). É possível que um dos favoritos, com dez indicações, volte para casa com as mãos abanando (é contigo, Sr. Scorsese). É possível que o Brasil ganhe sua primeira estatueta, premiando uma diretora que capturou a agonia de uma democracia jovem (estamos na torcida). Alguns dos melhores trabalhos de 2019 sequer foram lembrados (Adam Sandler por Jóias Brutas, Jennifer Lopez por As Golpistas), deixando a festa levemente capenga. Ainda assim, o Oscar continua sendo a premiação mais importante do cinema mundial, um evento para o qual voltam-se os olhos da indústria e do público. Ao menos uma certeza: não teremos o sabor amargo de uma vitória tão mequetrefe quanto a de Green Book ano passado. Este ano, a vitória incontestável será do bom cinema!

1917

FILME
1917 é o filme a ser batido este ano. Foi premiado pelo sindicado de produtores, levou o Bafta e é o favorito. Mas não descarte em hipótese alguma uma vitória de Parasita, incontestável melhor filme de 2019 que tornou-se uma das produções mais festejadas em Hollywood nas últimas semanas. A simpatia pelo trabalho de Bong Joon-Ho é gigantesca, e seria histórico um filme em língua não-inglesa quebrar o molde do Oscar. Era Uma Vez em Hollywood, barbada até meados de novembro, continua uma produção querida, mas perdeu o fôlego. E Jojo Rabbit, vai saber, pode se beneficiar de votos conflitantes entre as primeiras opções dos membros da Academia. Quanto aos outros indicados, estão aqui para figuração.

DIRETOR
Se existe alguma incerteza quanto ao Oscar para 1917, o mesmo não pode ser dito sobre seu diretor. Sam Mendes cravou o prêmio do sindicato dos diretores e o Bafta, garantindo seu segundo Oscar (vai ficar na estante ao lado do prêmio por Beleza Americana). E será merecido, já que 1917 é, acima de tudo, um triunfo de direção e de fotografia. Agora, se ouvirmos o nome de Bong Joon-Ho (que fez um trabalho mais sólido que Mendes), tudo pode acontecer!

Renee Zellwegger em Judy

ATRIZ
Renee Zellwegger fez seu retorno triunfal como Judy Garland em Judy – e sabemos quanto Hollywood gosta de lamber suas crias. É um trabalho belíssimo em um filme só ok, mas Renee tem a simpatia de seus pares e ganhou tudo que podia com papel. Tudo bem que Charlize Theron teve uma interpretação mais sólida e redondinha em O Escândalo, e se o mundo fosse justo ela seria a vencedora. Mas vai ficar em meus sonhos – assim como a indicação que não veio para Lupita Nyong’o por Nós!

Joaquin Phoenix em Coringa

ATOR
Coringa existe unicamente por causa de Joaquin Phoenix e seu retrato fragmentado do Palhaço do Crime. Assim como Renee, o ator tem colecionado prêmio atrás de prêmio, então a única dúvida aqui é a forma com a qual ele deve conduzir seu discurso, já que ele alfinetou seus pares no Globo de Ouro e apontou o dedo para o racismo estrutural da indústria ao receber o Bafta. Falta alguém puxar o coro de “Are you Coringa?” na cerimônia. Ah, o melhor ator entre os indicados é Adam Driver, por História de Um Casamento. Viva com isso.

Laura Dern em História de Um Casamento

ATRIZ COADJUVANTE
O prêmio para Laura Dern, que fez a advogada mais raivosa do cinema em História de Um Casamento, é ao mesmo tempo merecido e um alô pelo conjunto da obra. Porque não é seu melhor trabalho. Mas talvez tenha chegado a hora de a atriz ter um Oscar para chamar de seu. Dito isso, Scarlett Johansson está indicada duplamente, e aqui uas chances são maiores. Dito isso, Florence Pugh é uma força da natureza em Adoráveis Mulheres! Dito isso, o que a Academia estava pensando ao não indicar Jennifer Lopez??!

Brad Pitt em Era Uma Vez em Hollywood

ATOR COADJUVANTE
Brad Pitt é o coração de Era Uma Vez em Hollywood, e dificilmente seremos privados de mais um discurso esperto – o que ele já entregou em outras cerimônias das quais saiu vencedor. Pitt é prata da casa e talvez seu Oscar tenha demorado um tanto – essa é sua terceira indicação. Al Pacino e Joe Pesci, ambos indicados por O Irlandês, devem canibalizar um ao outro. Anthony Hopkins é a banda menos saborosa da maçã de Dois Papas (Jonathan Pryce infelizmente trombou com o Coringa na categoria principal), e Tom Hanks não deixou queixos no chão como Mr. Rogers em Um Lindo Dia na Vizinhança.

Parasita

FILME INTERNACIONAL
Vamos combinar assim: se Dor e Glória ganhar aqui, já pode estourar os rojões por Parasita na categoria principal. Mas é mais provável que tenhamos uma repetição de Roma no ano passado. Podemos, ainda assim, sonhar…

LONGA EM ANIMAÇÃO
Toy Story 4 tem a simpatia de todos, e é um belo filme, mesmo sendo o quarto da série. Ainda assim, a Netflix caprichou na artilharia animada, e tanto Perdi Meu Corpo quanto Klaus seriam mais dignos do que a derradeira aventura dos brinquedos da Pixar. Não sei por que, mas algo me diz que o conto de Natal da Netflix vai surpreender geral.

ROTEIRO ORIGINAL
Noah Baumbach ganhou o Spirit Awards, o prêmio do cinema independente, por seu trabalho em História de Um Casamento, e pode surpreender aqui. Mas este Oscar deve estar com o nome de Bong Jooh Ho escrito desde que saiu do forno: nenhum texto em 2019 chega perto da complexidade e das camadas de Parasita. Jogo as mãos pro céu!

Jojo Rabbit

ROTEIRO ADAPTADO
Jojo Rabbit sai na frente, principalmente por já ter garantido o Bafta e o prêmio do sindicato dos roteiristas… E porque eu quero MUITO ver o discurso de Taika Waititi agradecendo a Academia por ter tirado sarro de Hitler, do Nazismo e de toda aquela baboseira de extrema direita. Mesmo assim, essa é uma categoria que eu ficaria contente com quaquer vitória. Menos se fosse Coringa

FOTOGRAFIA
Roger Deakins por 1917. Não discuta. Próximo.

MONTAGEM
Em Ford v Ferrari, o trabalho da dupla Michael McCusker e Andrew Buckland é tão vital para sua narrativa quanto a direção de James Mangold. As cenas na pista ganham outra dimensão, com as corridas arrumadas como um quebra-cabeças intrincado. Na verdade, o único indicado que parece deslocado é Thelma Schoonmaker: para muita gente, inclusive os votantes da Academia, O Irlandês simplesmente ficou longo demais.

Honeyland

DOCUMENTÁRIO
Talvez essa seja a categoria mais disputada do ano. For Sama sai em vantagem por ter levado o Bafta, mas existe muito amor por Indústria Americana (co-produzido pela Higher Ground, empresa do casal Barack e Michelle Obama) e pelo clautrofóbico The Cave. Ainda assim, minhas fichas vão para Honeyland, que é belíssimo e também está indicado a melhor filme internacional. Democracia em Vertigem, o excepcional documentário de Petra Costa, ganhou tração nos últimos dias com a diretora fazendo um tour pela mídia americana, mas talvez tenha sido pouco visto pelos votantes. Ainda assim, dedos cruzados!

DOCUMENTÁRIO CURTA-METRAGEM
O Oscar deve bisar o Bafta e premiar Learning to Skateboard in a Warzone (If You’re a Girl).

CURTA-METRAGEM
Essas são as categorias que quebram o bolão de qualquer um! Brotherhood tem uma pegada política que fala ao zeitgeist, mas The Neighbor’s Widow parece estar mais próximo da sensibilidade da Academia.

Hair Love

CURTA-METRAGEM EM ANIMAÇÃO
Hair Love é fofo, tem uma pegada contemporânea que contagia e, de todos, parece ter sido o que fez mais barulho.

FIGURINO
É clichê porque é real: a Academia adora premiar um filme de época, e Adoráveis Mulheres traz os predicados que historicamente desenharam essa categoria. Por outro lado, o figurino de Era Uma Vez em Hollywood, além de também ser “de época” (mais recente, me deixa), evoca uma Los Angeles que pode ganhar mais simpatia entre a Academia por pura nostalgia.

TRILHA SONORA
O segundo Oscar de Coringa provavelmente sairá daqui – e com justiça! A trilha escrita por Hildur Guðnadóttir ajuda a construir o clima desesperador em torno da performance de Joaquin Phoenix. Thomas Newman, por sua vez, emplacou sua décima-quinta (!) indicação por 1917, e não seria um Oscar injusto. Tiro no escuro: será que a Academia vai coroar a aposentadoria de John Williams com um prêmio por seu trabalho em Star Wars: A Ascensão Skywalker? Por favor, não…

Rocketman

CANÇÃO
Vamos aos fatos: não tem uma canção digna de duas patacas entre as cinco finalistas. “Into the Unknown”, de Frozen 2? Só pode ser piada! “(I’m Gonna) Love Me Again”, que a dupla Elton John e Bernie Taupin escreveu para Rocketman é a escolha mais simpática – e mais sensata! Mas não descarte Cynthia Erivo, protagonista do drama Harriet, que também empresta sua voz para a óbvia “Stand Up”.

MIXAGEM DE SOM/EDIÇÃO DE SOM
Duas estatuetas, dois prêmios para 1917… dois Oscar que ficariam muito mais bacanas na conta de Ford v Ferrari.

Adoráveis Mulheres

DESENHO DE PRODUÇÃO
De longe, os dois melhores trabalhos nessa categoria pertencem a 1917 (o passeio pela França ocupada durante a Primeira Guerra Mundial é um assombro) e a Parasita (todo rodado em estúdio, com a casa principal sendo uma pérola do design, surgindo quase como um personagem). Mas será que o fator nostalgia daria vantagem a Era Uma Vez em Hollywood e sua reconstrução de uma Los Angeles em transformação artística e cultural? Hmmm…

MAQUIAGEM
O trabalho de Kazu Hiro, Anne Morgan e Vivian Baker ao transformar Charlize Theron na jornalista Megyn Kelly em O Escândalo é de cair o queixo, e de longe joga uma sombra na concorrência. Só Coringa pode puxar o tapete – talvez em solidariedade pela equipe traumatizada por Joaquin Phoenix.

EFEITOS VISUAIS
Ano passado eu apostei em Vingadores: Guerra Infinita e levei um caldo de O Primeiro Homem. Este ano vou apostar em Vingadores: Ultimato, pronto para uma granada de 1917 explodir minhas expectativas. Pergunta: O Irlandês seria um concorrente sério? As respostas, meus caros, teremos em algumas horas. Preparem-se!

Vingadores: Ultimato

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Caótico e cheio de personalidade, Aves de Rapina é show de Margot Robbie http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/07/caotico-e-cheio-de-personalidade-aves-de-rapina-e-show-de-margot-robbie/ http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/07/caotico-e-cheio-de-personalidade-aves-de-rapina-e-show-de-margot-robbie/#respond Fri, 07 Feb 2020 08:32:59 +0000 http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/?p=11147

Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa é uma bagunça. É anárquico, caótico e muitas vezes não faz o menor sentido. Personagens surgem, desaparecem e voltam a dar as caras sem a menor explicação. A linha temporal é fragmentada (o que nem sempre ajuda a fluidez da narrativa), a trama é um fiapo de ideias requentadas e os personagens, tirando a protagonista, tem, no máximo, um rascunho de desenvolvimento. Mas, quer saber? O resultado é gloriosamente divertido! Nas mãos da diretora Cathy Yan, Aves de Rapina transforma essa confusão em energia criativa, encontrando em Margot Robbie a parceira perfeita para elevar este “filme de super-heróis” genérico a uma celebração hipercinética envolvente e empolgante, um pedaço de pop-art com explosão de cores, grafismos e direção de arte ao estilo “Tim Burton num dia de Sol”. O que falta em coesão narrativa, transborda em personalidade – às vezes, acredite, é o bastante.

É também a chance de tirar o gosto amargo de Esquadrão Suicida, aventura capenga que teve como único brilho justamente a performance de Margot Robbie como Arlequina. Mas o que era uma personagem unidimensional, a femme fatale com um parafuso a menos, ganha aqui força dramática insuspeita e um arco dramático completo. Sua origem e os eventos do filme de David Ayer são relembrados logo nos créditos iniciais, que informam de cara o fim da relação de Harley Quinn com o Coringa. Existe um subtexto sobre como superar o rompimento de um relacionamento tóxico, mas Aves de Rapina não tem nenhuma pretensão em se aprofundar no tema: o foco não é o Palhaço do Crime, mesmo com sua sombra sendo essencial para a narrativa. Afinal, Harley sente-se intocável como namorada do vilão, e quando a separação é feita pública (ela explode o “símbolo” de seu amor), sua cabeça é colocada a prêmio por todo o submundo de Gotham – inclusive pelo gangster Roman Sionis, o Máscara Negra (Ewan McGregor, divertindo-se de montão).

A diretora Cathy Yan no set com suas garotas

Margot Robbie foi a primeira a entender a força da personagem não apenas como símbolo de empoderamento, mas também como propriedade intelectual. Assinando a aventura também como produtora, ela e a diretora tiraram de cena toda sugestão de símbolo sexual inerente à personagem, substituindo por algo mais poderoso: o trabalho em equipe feminino e a força irrefreável de mulheres quando atuam juntas – mesmo que o caminho seja tortuoso. Assim, Aves de Rapina torna-se uma representação genuína de girl power. O que já começa com a confiança depositada pelo estúdio em Cathy Yan, que não decepciona. A aventura tem ritmo, move-se em velocidade supersônica, é bem humorada e totalmente consciente de seu papel em ser uma aventura alto astral. Não tem as pretensões sócio-políticas de Mulher-Maravilha ou Capitã Marvel, talvez por isso traga interações mais naturais e pouse com mais leveza. A cena em que a Arlequina compartilha um elástico para cabelo com a Canário Negro no meio de um quebra-pau é o melhor exemplo de sororidade em filmes de ação modernos, porque é uma troca orgânica – as moças em minha sessão não seguraram um sorriso de cumplicidade.

Os fãs de quadrinhos “raiz” – ou seja, a turma chata que reclama quando uma costura no traje de um personagem é diferente de sua versão nos gibis -, vão se descabelar com as mudanças nas personagens. Dinah Lance, a Canário Negro (Jurnee Smollett-Bell) passa longe da loira com meia arrastão que namora o Arqueiro Verde: aqui ela é uma cantora no clube de Sionis que tem pouca paciência para injustiças e sabe se virar numa briga. A policial casca-grossa Renee Montoya não é braço direito do comissãrio Jim Gordon – e ela nos faz perceber que a incrível Rosie Perez tinha de aparecer em mais filmes. Mary Elizabeth Winstead não ganha muito o que fazer como a Caçadora, mas encarna a assassina em busca de vingança com tanta seriedade que parece estar na trilogia O Cavaleiro das Trevas (o que é, acredite, um barato). A maior mudança, porém, fica por conta de Cassandra Cain (Ella Jay Basco). A encarnação mais letal da Batgirl nos gibis, aqui ela é uma adolescente que se vira roubando transeuntes insuspeitos pelas ruas de Gotham. Ao se apossar de um diamante cobiçado pelo Máscara Negra (o macguffin do filme!), ela se torna um alvo e termina na mira de Arlequina e cia.

As Aves de Rapina, prontas para chutar traseiros

A trama é só desculpa para Arlequina superar sua dependência do ex e ganhar sua emancipação, trocando o “All By Myself” de O Diário de Bridget Jones por ultraviolência e humor afiado. Todos parecem se divertir em cena, ninguém leva a coisa muito a sério, e Aves de Rapina só é um filme “para maiores” por disparar um palavrão aqui, um corpo explodindo ali. Mas não é “sombrio e realista” como muitos acreditar ser o ideal para uma aventura de super-heróis. O tom é mais próximo ao de Shazam!, assim como a proposta: existe uma relação marginal com o universo compartilhado por Batman vs Superman e Esquadrão Suicida, mas em nenhum momento isso é colocado como uma bola de ferro atada ao calcanhar. Ewan McGregor entendeu o espírito da coisa e faz de seu Máscara Negra um vilão afetado e fantasioso, como se tivesse sido extraído de um episódio da série do Batman dos anos 60 – seu relacionamento homoerótico com o assassino Victor Zsasz (Chris Messina) amplifica esse clima camp. Faltam onomatopéias nas cenas de ação estilosas, bem ao estilo Deadpool e John Wick. E o figurino da Arlequina é coisa linda, fazendo a alegria de uma geração inteira de cosplayers que não aguentavam mais usar a camiseta “Daddy’s Little Monster”.

O maior problema da aventura é também seu maior triunfo: as Aves de Rapina funcionam tão bem juntas, a química entre as atrizes é tão natural, que é um pecado elas só se reunirem lá pelo terceiro ato. Mas tudo bem, afinal o show aqui é de Margot Robbie. Mesmo com toda a reformulação da DC no cinema, e do fim de seu universo estendido, especialmente após o fracasso criativo de Liga da Justiça, o retorno da Arlequina e sua ascenção ao posto de protagonista representam uma vitória pessoal para a atriz. Livre do elo com o Coringa, a personagem assume sua posição como ícone cinematográfico feminino sem estar à sombra de ninguém. O sucesso do filme com Joaquin Phoenix sepulta a possibilidade dessa versão da Arlequina dividir o palco com o Palhaço do Crime (sorry, Jared Leto), e o reboot do Homem-Morcego em The Batman, com Robert Pattinson, elimina qualquer chance de Ben Affleck atrapalhar o show. Margot já verbalizou sua vontade de levar para o cinema a parceria com outra vilã de Gotham City, a Hera Venenosa. E não há a menor dúvida que seu papel será anabolizado em The Suicide Squad, que James Gunn está filmando para o ano que vem. O ponto de partida de sua emancipação é aqui, neste filme imperfeito como ela, que encontra conforto em meio ao caos e prova que, com Margot Robbie no comando, o futuro de Harley Quinn no cinema está nas mãos mais capazes.

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Jóias Brutas: O maior mistério é a ausência de Adam Sandler no Oscar! http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/03/joias-brutas-o-maior-misterio-e-a-ausencia-de-adam-sandler-no-oscar/ http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/02/03/joias-brutas-o-maior-misterio-e-a-ausencia-de-adam-sandler-no-oscar/#respond Mon, 03 Feb 2020 07:20:30 +0000 http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/?p=11139

Pena que não consegui assistir ao excepcional Jóias Brutas ainda ano passado. Teria entrado na lista dos melhores filmes de 2019, cabeça a cabeça com Parasita. A torcida por uma indicação ao Oscar para Adam Sandler teria sido ainda mais entusiasmada. Não só a minha: qualquer pessoa com paixão por cinema que confira essa obra prima dos irmãos Bennie e Josh Safdie, que no Brasil pulou uma estreia nos cinemas para aterrisar direto na Netflix, vai encontrar um trabalho superlativo do ator, uma interpretaçao complexa, de diversas camadas, que entrega um personagem perturbado, ansioso e violento. Uma pessoa fragmentada pela vida que escolheu e pelos vícios que surgiram ao longo do caminho. É difícil imaginar que estamos vendo o mesmo ator de tosqueiras como Gente Grande, Pixels e o recente Mistério no Mediterrâneo. É um verdadeiro renascimento artístico para Sandler, que já havia flertado com filmes mais densos em sua carreira, sem nunca suger esse talento colossal por trás da fachada de “comediante”.

Até porque não existe essa bobagem de “ator do comédia”. Se um artista ganha destaque ao abraçar um gênero, não significa que ele deva se trancar em uma caixa. De Peter Sellers (Muito Além do Jardim) a Jim Carrey (O Show de Truman), de Jerry Lewis (O Rei da Comédia) a Robin Williams (Gênio Indomável), comediantes famosos demonstraram sensibilidade muitas vezes insuspeita ao encarar um papel dramático – o que nem deveria ser comédia, porque é justamente isso que bons atores fazem. Adam Sandler construiu sua carreira como um adulto infantilizado, com grunhidos e caretas disfarçados de performances em bobagens divertidas como O Rei da Água, O Paizão e Zohan, abraçando também seu jeitão de galã feio em comédias românticas de enorme sucesso (Como Se Fosse a Primeira Vez, Esposa de Mentirinha, Click, você provavelmente assistiu a todas). Com o gênero esvaziando nos cinemas, fechou contrato com a Netflix e continuou fazendo filmes ruins de enorme sucesso. De alguma forma, Sandler tornou-se aquele primo distante que aparece no almoço do aniversário da vó, que é insuportavelmente chato mas, mesmo assim, conta as melhores piadas.

Adam Sandler pega o pior uber pool da história…..

Parecia um ponto confortável para a carreira de um, vá lá, comediante. Mas Sandler sabia que seu talento não era um fenômeno unidimensional, e talvez esperasse o momento e o filme certo. Curiosamente, ele recusara Jóias Brutas em 2009, quando os irmãos Safdie lhe ofereceram o projeto. O roteiro seria, então, rodado com Jonah Hill como protagonista, mas o posicionamento das estrelas em Hollywood fez com que o filme voltasse para Sandler em 2018, já em outro ponto de sua carreira. E foi o casamento perfeito. Porque não é o caso de um astro que “desaparece” em um papel. Ainda é claramente Adam Sandler em cena, mantendo intactos muitos de seus trejeitos demonstrados em dúzias de filmes. O que faz de sua performance ainda mais fascinante: talvez essa força sempre estivesse lá (com certeza Paul Thomas Anderson a enxergou em Embriagado de Amor), e talvez ela simplesmente precisasse de uma válvula de escape condizente com seu talento, um material à sua altura. O resultado é um trabalho brilhante, em que o ator consegue uma conexão emocional surpreendente, resultando em uma obra brutalmente realista, em que a ansiedade experimentada pelo protagonista é capturada pelas lentes dos irmãos Safdie de maneira tão preocupante e incômoda que torna o filme uma experiência fisicamente exaustiva.

No centro de tudo está Howard Ratner. Dono de uma joalheria, ele tem entre sua clientela rappers e atletas. Logo fica claro que sua vida tem brilho tão superficial quanto as pedras que exibe: seu casamento hoje é só uma fachada, sua amante não preenche o vazio como ele imaginava. Para piorar, Howard é viciado em apostas, e os escambos com jóias e dinheiro alimentam uma prática que lhe colocou na mira de pessoas muito perigosas. Para coroar esse coro grego, ele finalmente recebe uma opal negra, pedra rara que lhe tomou dois anos e dezenas de contatos para trazê-la da Etiópia, que encanta o jogador de basquete Kevin Garnett (o astro da NBA interpreta a si mesmo) e torna-se o centro de uma tragicomédia que pode a) resolver todos os problemas financeiros e pessoais de Howard ou b) conduzí-lo em uma espiral descendente que ameaça atingir um ponto de não retorno. Família, amigos, amores (o elenco, de Eric Bogosian à revelação Julia Fox, é excelente), tudo se torna acessório para o personagem enfrentar seus próprios demônios e tentar encontrar alguma lógica em meio ao caos.

Os irmãos Safdie dirigem Sandler nas ruas de Nova York

Os irmãos Safdie já haviam mostrado seu estilo ácido e acelerado no excepcional Bom Comportamento, que em 2017 deixou na poeira quaisquer dúvidas sobre o talento dramático de Robert Pattinson, calando em definitivo seus detratores que ainda insistiam em enxergá-lo como o vampiro cintilante de Crepúsculo. Talvez o superpoder dos diretores seja enxergar no artista mais improvável uma força que talvez nem ele mesmo desconfie possuir. No caso de Jóias Brutas, sua confiança em Adam Sandler é tamanha que eles não se furtam em depositar sua narrativa em sua capacidade de entregar um personagem tão amoral e antipático, tão egoísta e imperfeito – talvez, justamente por tudo isso, tão demasiado humano, reflexo de um mundo em constante estado de pânico. A câmera não o abandona em (quase) nenhum momento da narrativa, nos colocando a seu lado quando ele insiste em investir em apostas esportivas (e no monólogo brilhante em que Howard expica sua compulsão). No pedido patético por uma segunda chance no casamento, na fúria inútil ao ser confrontado por cobradores violentos, quando sua emoções se estilhaçam ao perceber que a queda rumo ao abismo é inevitável. Tudo pontuado pela fúria maníaca de Adam Sandler, a mesma que emoldurou tantas comédias (para o bem e para o mal), aqui finalmente canalizada para o que é, de longe, o melhor trabalho de sua carreira. Ao não reconhecer Jóias Brutas, o Oscar comete uma de suas maiores injustiças: a Academia está cega.

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Novo Bad Boys prova que em time vencedor não se mexe (muito) http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/01/31/novo-bad-boys-prova-que-em-time-vencedor-nao-se-mexe-muito/ http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/01/31/novo-bad-boys-prova-que-em-time-vencedor-nao-se-mexe-muito/#respond Fri, 31 Jan 2020 07:23:44 +0000 http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/?p=11131

Will Smith já tem uma coleção de fios brancos no cavanhaque. Martin Lawrence mostra alguns (muitos) quilos a mais. Tirando isso, Bad Boys Para Sempre, terceiro exemplar da série que muita gente sequer lembrava existir, traz exatamente a mesma dinâmica, o mesmo roteiro raso, as mesmas cenas de ação exageradas e o mesmo caminhão de clichês de duplas policiais no cinema. Nem dá para dizer que é “igual, mas diferente”, porque no fim é igual mesmo. Ainda assim, alguma coisa faz a mistura funcionar, e o filme termina como uma aventura despretenciosa e divertida. A dupla de diretores Adil & Bilall, que entram no vácuo deixado por Michael Bay, não tinham a menor intenção de reinventar a roda, e apostaram em todos os pontos fortes da série. Em especial o carisma absurdo de seus protagonistas.

Quem mais se beneficia com o novo filme é, sem dúvida Martin Lawrence. Se em 1995 seu nome liderava os créditos do filme original, ele viu sua estrela diminuir ao longo dos anos. Seu último sucesso foi o horrível Motoqueiros Selvagens, de 2007, em uma carreira que só respirava com um ou outro Vovó… Zona da vida. Ao contrário de Will Smith, que tem cartucho para queimar mesmo quando um Projeto Gemini não atrai a atenção desejada, Lawrence rumava a um limbo pontuado por filmes esquecíveis e séries que ninguém estava muito a fim de conferir. Bad Boys Para Sempre era uma promessa sempre adiada, em especial por total indiferença da liderança do estúdio, que não enxergava potencial para estender as aventuras dos dois policiais de Miami. Quando um novo chefão assumiu, bateram a poeira e apostaram em uma terceira parte, dezessete anos depois da última aventura.

Will SMith e o sangue novo em Bad Boys Para Sempre

O fato é que nostalgia, quando bem embalada, vende. Bad Boys não traz a bagagem de um As Panteras, que tornou-se propaganda para empoderamento feminino (e estacionou em uma bilheteria global de 70 milhões de dólares), ou de O Exterminador do Futuro: Destino Sombrio (que rendeu decepcionantes 250 milhões em todo o mundo). Mas apostou na fórmula acelerada dos filmes de ação dos anos 90, com toda a incorreção política, todo o humor fora de ordem e toda a narrativa fantástica que causa conexão imediata para um público pouco exigente. É um filme bonito, bem produzido e com a única pretensão de entreter por um par de horas. Funcionou, somando 225 milhões nas bilheterias em apenas duas semanas em cartaz totalmente na base do charme de seus astros. Foi uma aposta inteligente da dupla de diretores, que faz o máximo para mimetizar o estilo explosivo de Michael Bay (que deu sua bênção e ainda surge como ator em uma ponta) e anabolizar o subtexto de “somos uma família” que, sejamos honestamente, fez tão bem a outra série, Velozes & Furiosos.

O fato é que Bad Boys Para Sempre é uma versão com menos músculos da “saga” encabeçada por Vin Diesel, com uma dose cavalar de carisma ao estilo Máquina Mortífera, de quem pesca inclusive o bordão “estou velho demais para isso”. A colcha de retalhos ainda bebe de Os Mercenários 3, com os detetives Mike Lowrey e Marcus Burnett se vendo obrigados a dividir o palco com uma nova geração de policiais versados tanto na arte de ser casca grossa quanto na modernidade de conduzir investigações usando o máximo da tecnologia. É uma combinação que vem a calhar quando figuras proeminentes do combate ao crime em Miami são sistematicamente assassinadas por um atirador tão preciso quanto cruel. Quando ele foca sua mira em Mike, deixando-o à beira da morte, o que parecia uma trama de vingança mostra ramificações que remetem ao passado do personagem de Will Smith, antes mesmo de iniciar sua parceria com Burnett. Esse fiapo de trama traz consigo um caminhão de obviedades d gênero, que incluem interrogações estilo policial bonzinho/policial malvado, agentes da lei agindo fora das regras, sentimentalismo armado com frases feitas e um elenco de coadjuvantes que elevam a coisa toda – eu não lembrava o quanto era bom ver Joe Pantoliano em cena, e o armário Alexander Ludwig mostra um humor que Vikings não deixava transparecer.

Adil e Bilall, novos diretores para uma nora era de tiros e explosões

Mas Bad Boys Para Sempre é mesmo um show para Will Smith e Martin Lawrence mostrarem o quanto funcionam bem juntos em cena. Com uma amizade amparada em um senso de lealdade e em bom humor, os dois fazem com que Mike e Marcus sejam personagens completos, e não apenas caricaturas para emoldurar mais uma perseguição ou outra explosão. É um motor de puro carisma que os conduz, cada um trabalhando seus pontos fortes (a aura de rockstar de Smith, o jeito de tiozão do pavê de Lawrence) em um filme que aposta no absurdo e na fantasia. Velozes & Furiosos chega ao nono filme como fenômeno global usando ferramentas parecidas (subtraindo, infelizmente, o senso de humor), e Máquina Mortífera anuncia um possível quinto episódio movido unicamente pela força da nostalgia. Ao contrário de Bad Boys Para Sempre, que colocou Michael Bay na arquibancada, eles não pretendem mover uma palha no time vencedor: em vez de apostar em algum time de diretores modernos, a ideia é tirar o nonagenário Richard Donner de uma merecida aposentadoria. Aparentemente ele não está muito velho para tudo isso.

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Roger Deakins, diretor de fotografia de 1917: “Podia ter dado muito errado” http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/01/29/roger-deakins-diretor-de-fotografia-de-1917-podia-ter-dado-muito-errado/ http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/01/29/roger-deakins-diretor-de-fotografia-de-1917-podia-ter-dado-muito-errado/#respond Wed, 29 Jan 2020 06:02:11 +0000 http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/?p=11126

É difícil assistir a um filme que tenha Roger Deakins como diretor de fotografia e ficar indiferente. Depois de começar sua carreira no fim dos anos 70 com uma série de curta metragens e documentários, ele passou a deixar sua assinatura visual em trabalhos tão distintos como 1984, Sid & Nancy e o belíssimo As Montanhas da Lua. O mundo passou a prestar mais atenção em 1995, quando ele filmou Um Sonho de Liberdade para o diretor Frank Darabont, que lhe rendeu sua primeira indicação ao Oscar, seguindo uma parceria com os irmãos Joel e Ethan Coen, com Sam Mendes e, mais recentemente, com Denis Villeneuve. A estatueta dourada lhe fugiu outras doze vezes antes de finalmente a Academia reconhecer seu imenso talento com Blade Runner 2049. No papo a seguir Deakins fala sobre os desafios para filmar o drama de guerra 1917, a abordagem com diferentes diretores e a forma como ele enxerga grandes produções, como 007 – Operação Skyfall e o próprio Blade Runner como apenas mais um trabalho. Sobre a mais recente indicação ao Oscar, para o qual ele é favorito com 1917, Deakins desconversa: “As coisas são o que são”. E serão!

Antes de mais nada, parabéns pela indicação ao Oscar!
Ah, obrigado.

1917 é um filme de visual impressionante, e seu trabalho é a base em que a narrativa foi construida. Por que a decisão de filmar como se fosse uma única tomada?
A decisão foi do Sam (Mendes). Ele já escreveu o roteiro com isso em mente. Ele nem mencionou quando conversamos sobre o roteiro, ele só me mandou o texto e estava escrito já na primeira página. (risos)

Quando Sam Mendes falou para você sobre sua visão para o filme, qual aspecto das filmagens você imaginou que fosse o mais desafiador?
Olha, imediatamente eu imaginei que as condições climáticas fossem dar trabalho. Para fazer o filme em tempo real o clima teria de combinar em dias diferentes de filmagem. E eu queria que a ação acontecesse no fim da tarde, entrando noite adentro até o amanhecer. Então minha maior preocupação sempre foi o clima.

E a previsão do tempo colaborou com vocês?
(risos) A verdade é que a gente deu muita sorte! O céu estava super claro e muito azul no primeiro dia de filmagem, então não dava para filmar nada. Mas pudemos ensaiar, e logo as nuvens estavam de volta e a gente voltou ao cronograma. Mas podia ter dado muito errado.

“Emoldurar” os atores com luz é parte do repertório de Roger Deakins

Assistindo a imagens dos bastidores, 1917 parecia uma verdadeira operação de guerra. Quanto tempo cada cena levava para ser planejada? Vocês filmaram muita coisa em ordem cronológica?
Sim, muita coisa foi rodada na ordem que aparece no filme, muito disso por conta do uso das locações, em especial as cenas de batalha. E o planejamente foi bem isso: tudo tinha de estar mapeado muito antes de os sets serem construídos, antes de as trincheiras serem cavadas, tivemos de planejar e ensaiar com os atores antes de muitas decisões serem tomadas. Até por que não havia espaço para cortar muita coisa, como geralmente acontece em outras filmagens. Tudo teve de ser muito preciso porque dependíamos de muitos fatores externos, então não havia escolha a não ser estarmos muito preparados.

Mesmo com esse planejamento, alguma cena deu errado e vocês tiveram de voltar ao começo para refazer?
Aconteceu, claro. Às vezes estávamos rodando há 4, 5 minutos, algo acontecia e tínhamos de parar tudo. Voltar ao começo. Mas é a natureza do trabalho, mesmo que a pressão tenha sido incomum. Não tinha como dizer “bom, gostamos do começo dessa tomada, vamos rodar o meio para preencher a lacuna”. Quando trabalhamos com cenas longas, isso se torna uma impossibilidade.

Quanto tempo foi necessário para rodar o filme inteiro?
Na verdade, nem foi tanto tempo assim! Acho que encerramos os trabalhos em 65 dias, o que para um filme dessa escala não é muito. Mas tivemos muito tempo de preparação, ensaiamos exaustivamente, e quando chegou a hora de filmar foi relativamente fácil. Eu disse que o aspecto mais comlicado era mesmo o clima, e tivemos sorte. Acho que perdemos não mais que uns quatro dias por causa do tempo. A gente terminou dentro do prazo!

Luz é o grande desafio ao fotografar um filme, e em muitas cenas a câmera circula os atores por completo, contando apenas com iluminação natural? Em algum momento você teve de esperar além do previsto para capturar uma única tomada?
Se não me engano isso ocorreu em um segmento que filmamos dentro da trincheira. Talvez a última cena antes de eles partirem para a terra de ninguém. Acho que tivemos de repetir pelo menos umas quarenta vezes, o que é muito, mas muito mesmo! Esse foi o mais…. acho que o que exigiu mais de todos nós fisicamente… (risos)

A vida na trincheira é sempre dureza

Você já trabalhou antes com Sam Mendes, além de ter fotografado vários filmes dos irmãos Coen e, mais recentemente, de Denis Villeneuve. Qual sua abordagem à cinematografia ao trabalhar com diretores tão distintos?
Olha, eu não posso dizer que faço nada diferente. Depende muito do filme e da história. Mas eu não mudo o que eu faço, mesmo que cada diretor trabalhe de maneira diferente. Os irmãos Coen fazer storyboard do filme inteiro com precisão, já Denis nem sempre desenha antes de filmar, mas as coisas podem mudar no set. O primeiro filme que eu fiz com Sam foi Soldado Anônimo, e não fizemos um storyboard sequer. Não ensaiamos até estar com a câmera ligada, porque quase todo o filme foi rodado com uma câmera de mão e a gente começou a trabalhar assim que os atores chegaram. Então filmamos os ensaios para ter ideia de onde posicionar a câmera. Então é o filme que vai determinar a abordagem. Soldado Anônimo foi totalmente diferente de Operação Skyfall, que foi completamente diferente de 1917. Tudo depende do projeto.

Existe algum gênero em que você prefira trabalhar?
Não… acho que não. Na verdade, não. (risos) Cada gênero traz desafios completamente diferentes.

Você mencionou Skyfall, que eu considero o filme mais bonito de toda a série James Bond. Como foi trabalhar com uma marca tão poderosa? Teve mais liberdade, menos liberdade, haviam regras…
Sabe, a gente pode fazer um filme pequeno e ter mais liberdade, ou trabalhar em um filme grande e não poder correr os mesmos riscos. O curioso sobre Skyfall foi que eu tinha muitas reservas em relação a trabalhar em um James Bond, e eu fui muito honesto com os produtores. Então eu tirei da frente o peso de ser uma aventura de 007 e encarei como se fosse qualquer outro filme. Eu e Sam encaramos da mesma forma que fizemos em Soldado Anônimo ou Foi Apenas Um Sonho. Um pedaço enorme de Skyfall foi rodado com uma única câmera, mesmo que em filmes assim geralmente tenham cobertura por diversas câmeras. Eu estava operando a câmera como faço sempre. Claro, não trabalhei em muitas produções que tinham uma segunda unidade de filmagem tão grande, e haviam alguns desafios técnicos bem específicos que resolvemos rapidamente. Não foi então tão diferente do resto. Um cronograma maior, mais viagens e mais locações.

Em Blade Runner 2049 você teve o mesmo pensamento? Houve alguma preocupação em ter alguma conectividade com o visual do filme original?
Foi basicamente o mesmo pensamento que tive com Bond. Para mim era só um filme, e eu precisava resolver como filmar aquele filme em especial. Não era o original, tinha uma outra história, ambientada décadas depois! (risos) A ideia foi trazer a nossa sensibilidade a ele. Quero dizer, é tudo que podemos fazer, certo? Para ser honesto, Denis não dirige como Ridley Scott, são pessoas diferentes, então precisamos fazer da nossa maneira, e não remeter ao trabalho de outra pessoa. Filmar assim seria muito enfadonho!

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Cinema sem firulas: O Brasil precisa de mais filmes como A Divisão http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/01/24/cinema-sem-firulas-o-brasil-precisa-de-mais-filmes-como-a-divisao/ http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2020/01/24/cinema-sem-firulas-o-brasil-precisa-de-mais-filmes-como-a-divisao/#respond Fri, 24 Jan 2020 07:13:16 +0000 http://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/?p=11117

A Divisão é um filme bruto. É violento, não economiza no sangue, é tenso e não se furta em deixar um rastro de cadáveres pelo caminho. Bruto. É também um ótimo exemplo de como produzir cinema de gênero no Brasil sem colocar uma “mensagem” no meio do caminho – é um filme, não uma máquina de fax. Nas mãos de Vicente Amorim, o filme transplantado da série da GloboPlay traz um recorte da crônica policial carioca contemporânea, o combate de uma “epidemia de sequestros” que tomou o Rio de Janeiro em meados dos anos 90 por parte da DAAS, a Divisão Antisequestro da cidade. Não seria nenhum problema se a trama enveredasse pelo realismo social que já rendeu produções de primeira em nosso cinema. Mas é para aplaudir a decisão em fazer de A Divisão um thriller policial acelerado e empolgante, com alguns caminhos familiares ao gênero (policiais corruptos, políticos incompetentes) traduzidos em cinema pop de qualidade.

A trama é de simplicidade franciscana. Nos anos 90, o Rio de Janeiro foi tomado por uma onda de sequestros que os criminosos enxergavam como uma indústria extremamente lucrativa. A abdução da filha adolescente de um deputado faz com que o chefe de polícia coloque dois times antagônicos trabalhando juntos. A turma encabeçada por Santiago (Erom Cordeiro) entende a mecânica da cidade, e tocam o trabalho com um dedinho na corrupção, fazendo acordos com traficantes e conhecendo o submundo bem de perto. Do outro lado está o delegado Mendonça (Silvio Guindane), visto como “herói” pela imprensa e pela população, com tolerância zero para corrupção e sem o menor problema em usar de tortura e violência contra bandidos. Os métodos diferentes logo se mostram complementares. Os policiais precisam, de alguma forma, encontrar uma arena em comum para colocar as desavenças de lado e, mesmo com as imensas dificuldades apresentadas pela malha criminosa da capital carioca, resolver o caso.

Tire dois segundos para apreciar a poesia nessa manchete de jornal….

Ao saltar para o cinema, A Divisão abraça sua vocação em ser um legítico filme policial pop, em que discursos abrem espaço para ação. poucas vezes se viu uma produção tão caprichada, com perseguições e tiroteios pelas vielas do Rio que o cinema não via desde o segundo Tropa de Elite, uma década atrás. É muito tempo para um gênero que deu tão certo por aqui não ganhar novas edições. Por outro lado, cinema de ação é uma engenharia complexa e cara, em que verborragia não dá conta do recado: ao contrário do folhetim televisivo, aqui o público precisa ver a ação, não ouvir uma descrição. Mais ainda: ação precisa de estrutura para funcionar, precisa existir à medida em que o roteiro exige, e precisa de personagens com arcos dramáticos bem definidos para que exista alguma conexão emocional com quem está do lado de cá. Somos bombardeados, afinal, com dúzias de exemplares importados que são muito estilo e pouca substância, e um deslize é o que basta para uma ideia se tornar uma farsa. No caso de A Divisão, a preocupação com desenvolvimento de personagens, em entender a cabeça de quem se mete a combater o crime em uma metrópole violenta, faz toda a diferença.

O elenco é ferramenta fundamental para mergulhar na trama. Aqui a dinâmica entre Cordeiro e Guindane, policiais com bússolas morais tão distintas, humaniza a trama ao mostrar as consequências de uma vida ao lado do crime – sem precisar, entretanto, de uma investigação profunda sobre o que os move. Lembro de Michael Mann, ao dirigir a versão para cinema de Miami Vice, explicar que seus personagens eram inspirados em policiais da divisão de narcóticos que, acima de tudo, estavam naquela vida pela adrenalina de prender bandidos. Esse ímpeto pela justiça, mesmo em um sistema que dá margem para a corrupção, é o que move os protagonistas de A Divisão. Se abre espaço para uma reflexão sobre o papel do policial em uma grande metrópole, seus laços estreitos com criminosos e o papel da política na operação policial, é também um filme policial legítimo, cinema pop para quem busca duas horas de escapismo puro. O melhor de dois mundos, e um caminho que a produção nacional faria bem em seguir com mais frequência.

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