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A queda de Kevin Spacey sinaliza o fim de Hollywood ou um recomeço melhor?

Roberto Sadovski

05/11/2017 22h45

Harvey Weinstein caiu. Ante uma enxurrada de denúncias pesadas de assédio moral e sexual e de estupro, um dos homens mais poderosos da indústria do cinema se tornou tóxico, banido por seus pares e, pelo andar da carruagem, não vai demorar para estar preso. Mas, como diz a história, foi apenas o começo. As denúncias contra Weinstein deram força a dezenas, centenas de pessoas que também foram molestadas em algum ponto de sua vida por alguém no andar superior da cadeia alimentar de Hollywood contarem sua história. E quando chove, sabemos, não é uma garoa, mas uma tempestade. Só que as denúncias não pararam em nomes nos bastidores, como Harvey e, engrossando o caldo, o diretor e roteirista James Toback. Agora o assediador tem nome, tem rosto e tem fama. Estamos testemunhando o fim de uma era. E não deve parar por aí.

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Kevin Spacey diz não lembrar quando, há três décadas, tentou abusar sexualmente do ator Anthony Rapp. Disse estar embriagado e não recorda de ter chamado o adolescente de 14 anos a seu quarto, carregá-lo para a cama e se colocar por cima dele, antes que Rapp se desvencilhasse e saísse de lá. Spacey tinha 26 anos. Inspirado pelas mulheres que trouxeram suas próprias histórias de abuso a luz, Rapp, que pode ser visto hoje na série Star Trek: Discovery, deu seu relato como forma de encorajar outras pessoas a não manterem mais o silêncio. Abuso, afinal, não tem data de validade, e o abusador deve enfrentar seus erros – o ator oscarizado por Os Suspeitos e por Beleza Americana publicou um pedido de desculpas malandro e, na mesma pegada, escolheu o pior momento para assumir sua homossexualidade, como se uma coisa tivesse relação com a outra. Pegou mal. Muito mal.

Kevin Spacey em House of Cards

Foi o proverbial castelo de cartas. Dois outros homens que foram tratados de maneira imprópria por Spacey foram a público. Histórias que ele era um verdadeiro predador sexual quando dirigiu o teatro londrino Old Vic vieram à tona – "Parece que os únicos requisitos eram ser homem e ter menos de 30 anos para que o Sr. Spacey se sentisse no direito de nos tocar. Era tão comum que isso se tornou uma piada interna (de péssimo gosto)", disse o ator Roberto Cavazos, um dos acusadores. Na sequência, membros da equipe da série House of Cards, da qual Spacey é produtor e protagonista, corroboraram o ambiente insalubre nos bastidores da série, apontado como causa o comportamento predatório do ator. Ato contínuo, o Netflix encerrou os laços profissionais com o astro e deve seguir um caminho alternativo com a série. O filme Todo o Dinheiro do Mundo, de Ridley Scott, que planejava uma campanha para a indicação de Spacey ao Oscar de melhor ator coadjuvante, vai seguir sem contar com o ator em nenhum material promocional; a campanha para a estatueta dourada subiu no telhado. E não deve parar por aí.

As últimas semanas viram Hollywood ser virada ao avesso, com casos de assédio moral e sexual pipocando numa velocidade absurda. Dustin Hoffman, hoje com 80 anos, foi acusado de atacar uma assistente da produção de A Morte do Caixeiro Viajante, em 1985; dias depois, uma roteirista denunciou seus avanços sexuais no começo dos anos 90. O ator Danny Masterson, que hoje pode ser visto na série The Ranch, também foi denunciado por estupros ocorridos no começo dos anos 2000. Giuseppe Tornatore, diretor de Cinema Paradiso, teria agarrado à força uma showgirl após uma reunião de trabalho duas décadas atrás. E ainda pairam acusações sobre Casey Affleck. Louis CK. Bryan Singer. Jared Leto. Bill Cosby. Lars von Trier. Steven Seagal.

O diretor Brett Ratner em uma premiação em Los Angeles

O diretor Brett Ratner, antes um dos sujeitos mais poderosos na Warner, com sua Ratpac Entertainment co-financiando de Dunkirk aos filmes de Clint Eastwood ao Universo Estendido DC, enfrenta denúncias severas de assistentes e de atrizes como Natasha Henstridge e Olivia Munn. Eu conheci Ratner no set de Dragão Vermelho, no começo dos anos 2000. Em duas décadas como jornalista de entretenimento, ele foi um dos poucos cineastas com quem mantive contato frequente. Acompanhei a pós-produção do terceiro X-Men. Quando dirigi a redação da revista Sexy, convidei-o para fotografar um ensaio de capa, que seria realizado em sua mansão em Los Angeles – problemas de agenda inviabilizaram o trabalho. No set de A Hora do Rush 3, também em Los Angeles, vi Ratner cercado constantemente – em seu trailer e também na pausa para o almoço – das figurantes que faziam coristas em uma cena passada no Moulin Rouge de Paris. Nosso último papo foi uma exclusiva durante o lançamento de Roubo nas Alturas. Seu staff trazia única e exclusivamente mulheres. A Warner cortou laços com a Ratpac, e a cinebiografia de Hugh Hefner, criador da Playboy, a ser dirigida por Ratner, foi adiada e, se voltar em cena, deverá contar com outro diretor. E não deve parar por aí.

Em março de 2001, uma matéria publicada pela já defunta versão ianque da revista Première expunha, com detalhes, o estilo predatório e sexualmente agressivo de Arnold Schwarzenegger, então em negociações para rodar o terceiro O Exterminador do Futuro e anos antes de assumir o governo da Califórnia. Entre as acusações, a reportagem apontava a humilhação pública de uma assistente de produção no set de T2, que teve os seios expostos pelo ator em meio à equipe – ou a repórter que teve de entrevistar o astro, em 1990, sentada em seu colo, enquanto ele tocada suas pernas e seios. "Arnold é assim mesmo", disse um dos representantes do astro à época. A revista não foi processada. Dois anos depois, quando se preparava para concorrer ao cargo público, as acusações contra Schwarza, com ao menos quinze mulheres apontando seu comportamento inapropriado, ressurgiram. "Peço desculpas por meu mau comportamento", chegou a dizer. Ficou por isso mesmo.

Arnold Schwarzenegger em O Vingador do Futuro, de 1990

Os tempos mudaram, claro. A luta constante por direitos iguais e por melhor tratamento de mulheres na indústria do cinema (e no mundo, sendo bem honesto) inspirou dezenas, centenas de vítimas a tomar o passo necessário para enquadrar seus agressores. No momento em que você estiver lendo esse artigo, é bem provável que mais algum "poderoso" do cinema (isso que  as portas ainda não foram abertas em outras áreas do entretenimento) tenha sua vida devassada, sua obra questionada e seu futuro podado. Kevin Spacey é um gênio como ator, e vários de seus filmes, como Seven e Los Angeles – Cidade Proibida, continuam entre meus favoritos de todos os tempos. Mas ele agora é veneno, um artista que dificilmente ganhará uma segunda chance de seus pares. O mesmo vale para todos os outros que viram seus crimes agora expostos à luz. Hollywood está aos poucos se esfarelando, mas se esse for o passo necessário para que a indústria seja reconstruída mais justa, mais sólida e sem essas práticas, que seja. A sociedade – imprensa, artistas, políticos, eu e você – que tem sido conivente, pelo jeito cansou de virar o rosto. A arte vai sobreviver. Os predadores, não. E não deve parar por aí.

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Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.