Os 10 melhores filmes de 2019
2019 pareceu um enorme mês de agosto: interminável, insuportável, em que todo dia parecia segunda-feira. Foi um ano difícil, em que o Brasil termina mais triste, flertando com a censura, em que a cultura mais uma vez teve de se posicionar para resistir às forças da ignorância e do retrocesso. Ainda assim (ou talvez por esse exato motivo), foi também um ano em que o cinema nacional brilhou forte, com filmes como Democracia em Vertigem, Turma da Mônica: Laços, Bacurau e A Vida Insivível provando que temos qualidade e diversidade, prontos para peitar as adversidades e mostrar ao resto do mundo que o país não é digno de risos, e sim de aplausos. A vida na tela grande, por fim, continuou sendo um oásis para reflexão, para emoção e para entretenimento, referendando o poder da arte como a maior arma para combater as trevas.
Fechar uma lista com meus dez favoritos foi difícil ante a avalanche de qualidade, especialmente no segundo semestre – alguns títulos nacionais ali em cima fizeram parte da lista por bons meses, e fosse ela mais extensa teriam lugar cativo. Mas regras são regras, e vamos a elas: uma dezena de filmes, produzidos em 2019 e que eu tenha visto em 2019. Uma ausência que doeu, é também uma aposta poderosa para o Oscar do ano que vem, certamente estaria por aqui se eu tivesse assistido: Jóias Brutas, com Adam Sandler, que deve chegar por aqui via Netflix no fim de janeiro. Outras menções honrosas, que arranharam a lista mas não fizeram o corte, foram Nós (Jordan Peele), Um Belo Dia na Vizinhança (Marielle Heller), Midsommar (Ari Aster), Ad Astra (James Gray), Entre Facas e Segredos (Rian Johnson), Dois Papas (Fernando Meirelles) e Vingadores: Ultimato (Joe e Anthony Russo) – todos excelentes, todos representando gêneros e ideias diferentes, todos cinema de primeira. E é isso, agora que rufem os tambores…
10. JOJO RABBIT
(Taika Waititi)
Taika Waititi é um sádico. Ele sabe exatamente até que ponto enfiar a faca e o momento exato de torcê-la. Jojo Rabbit começa como uma comédia desvairada ambientada durante a Segunda Guerra Mundial sobre um menino alemão, Jojo, (o excepcional Roman Griffin Davis), encantado com o exército formado por Hitler e pelo apelo do nazismo, que descobre que sua mãe (Scarlett Johansson) está escondendo uma jovem judia (Thomasin McKenzie) em casa. O assombro, alimentado pelas histórias apavorantes espalhadas pelo regime sobre como os judeus seriam criaturas demoníacas, mistura-se ao fascínio e ao despertar de sua verdadeira natureza conflitante. Ele é, afinal, um garoto de bom coração, conduzido por uma ideologia nefasta. A coisa toda tem uma pegada lúdica, já que Jojo pede sempre conselho a um amigo invisível, o próprio Adolf (interpretado pelo próprio Taika). O clima tenso é entrecortado pelo humor irreverente, até que o diretor decide lembrar a todos que se trata de um filme de guerra – e guerras cobram um preço terrível. Jojo Rabbit é várias coisas: um filme contra o ódio, uma observação da guerra pelos olhos de uma criança, uma sátira impiedosa. E também a lembrança do talento gigantesco de Taika Waititi. Estreia em 6 de fevereiro
9. ADORÁVEIS MULHERES
(Little Women, Greta Gerwig)
A história com tintas autobiográficas escrita por Louisa May Alcott em 1868 já foi traduzida dezenas de vezes no teatro, radio, TV e cinema (são sete versões!). É espantoso, portanto, que Greta Gerwig tenha encontrado um caminho para construir, de longe, a melhor delas. Uma explicação talvez esteja no quanto a história surja tão urgente e atual para os dias de hoje, mesmo retratando a vida de quatro irmãs na America do século 19. O tempo pode mudar tudo no mundo, exceto pela forma como as pessoas ainda se relacionam, amam, choram, sofrem, sorriem, vivem! Algumas alterações aqui e acolá na estrutura da trama fazem desse Adoráveis Mulheres um filme sólido sobre a relação fraternal das irmãs March, que vivem com sua mãe em Massachussets enquanto seu pai enfrenta o horror bem real da Guerra Civil. Jo (Saoirse Ronan) é a mais independente, questionando os padrões vigentes e nutrindo seu talento como escritora. Ela é o porto seguro no qual orbitam Meg (Emma Watson), Amy (Florence Pugh) e Beth (Eliza Scanlen). Dividindo a narrativa em dois períodos cronológicos distintos – pontuados por uma direção de fotografia que vai do calor vibrante ào cinza estéril -, Gerwig não perde tempo ao entrelaçar amores, desilusões, promessas, frustração, paixão e morte, não necessariamente nessa ordem. O elenco brilha, mas Saorsie Ronan e Florence Pugh são verdadeiras forças da natureza! Para ver com uma lágrima no canto do olho e um sorriso desenhado nos lábios. Estreia em 9 de janeiro
8. O FAROL
(The Lighthouse, Robert Eggers)
Desde A Bruxa é aconselhável ficar de olho no trabalho do diretor Robert Eggers. Ajudando a moldar o cinema de terror moderno, ele tem demonstrado que o medo verdadeiro não reside em sustos fáceis, e sim nos caminhos insondáveis da mente e da alma humana. O Farol é uma das experiências mais sufocantes jamais compartilhada em sala escura, um filme sobre loucura e paranóia, sobre o olhar apavorante para nosso inconsciente e como ele consegue destruir as barreiras já tênues da sanidade do lado de cá. A trama é simples: Robert Pattinson e Willem Dafoe (os únicos em cena, dois artistas no auge de suas habilidades dramáticas) deslocam-se para uma ilha remota na costa da Nova Inglaterra no fim do século 19 para trabalhar juntos no farol. Mas eles não vão sozinhos: cada um carrega sua bagagem de segredos enterrados, de traumas latentes, de violência contida. Aos poucos o clima, a camaradagem (ou falta dela) e a brutalidade da rocha estéril que eles precisam dividir (semanas? meses?) explode em um clímax que pode ou não ser real. Eggers amplifica cada sentimento com uma fotografia em preto e branco carregada em contrastes, filmada em formato quadrado, quase claustrofóbico. Não se espante se, mesmo na sala do cinema, assistindo ao filme em tela grande, você sentir o ar faltar… Estreia em 2 de janeiro
7. HISTÓRIA DE UM CASAMENTO
(Marriage Story, Noah Baumbach)
História de Um Casamento é um filme sobre dor. Bom, até aí nenhuma novidade: a ruptura de um relacionamento deixa cicatrizes indeleveis, e não seria diferente no mundo da ficção. O que Noah Baumbach cria, porém, é um retrato do que acontece depois dessa ruptura. Não exatamente os por quês, e sim o como. Como, afinal, duas pessoas com conhecimento tão íntimo um do outro conseguem apagar esses laços? Mesmo que o caminho seja pavimentado por mentiras, por uma pitada de traição, com uma vida sendo, paradozalmente, anulada e evoluída por influência de outra. São pequenos sacrifícios, pequenas fissuras que passam despercebidas quando o amor ainda cobre as imperfeições, mas que expandem-se ao longo dos anos às custas de frustração e de tristeza. Baumbach não quer apontar nenhuma culpa, e sim entender essa arquitetura complicada, em especial quando outros elementos entram no desenho, como filho, família…. e advogados. Scarlett Johansson nunca esteve melhor, em uma interpretação madura, contida, que traz em expressões sutis uma gama infindável de sentimentos, da culpa à auto afirmação. Mas é Adam Driver quem nos guia pelos extremos, da polidez postiça com que ele vê sua rotina se esfarelar à fúria traduzida nas piores palavras que uma pessoa pode dizer à quem ama, um abismo de desespero tão impactante quanto humano – o Oscar só não será dele se o outro Adam surpreender! São personagens, são pessoas de verdade, em uma história que dói. Porque não precisava ser assim. Já disponível na Netflix
6. DOR E GLÓRIA
(Dolor y Gloria, Pedro Almodóvar)
Confesso que já havia perdido a fé em Almodóvar. Lembro da vergonha ao final do atroz Amores Passageiros, e das risadas na última cena do superestimado A Pele Que Habito. Mas nunca duvide da força de um gênio. Se Julieta apontava um retorno à boa forma, ainda que em um filme esquecível, Dor e Glória é a lembrança do motivo pelo qual o mundo se encantou com o cienasta espanhol em primeiro lugar. Antonio Banderas é Salvador, diretor de cinema que vive em dor física crônica, separado por anos de um passado de glória como um autor festejado. Este mesmo passado, porém, parece voltar com força, impulsionando uma reflexão que pode apontar um novo futuro. Almodóvar pincelou fragmentos de sua própria vida para construir o roteiro, tem Banderas perfeito como alter ego e encontra espaço para fazer um filme sobre cinema, sobre lembranças e sobre amor, uma verdadeira celebração da vida. Eu falei mais sobre Dor e Glória aqui.
5. 1917
(Sam Mendes)
Depois de passar alguns anos no mundo de James Bond, o diretor Sam Mendes podia ter escolhido um filme mais suave para recarregar as energias. Mas Mendes parece ser movido por desafios, e 1917 terminou como a produção tecnicamente mais complexa do ano, uma experiência de guerra quase imersiva que encontra em um gênero tão antigo quanto o cinema espaço para inovar. Não imagine, entretando, que é o caso de estilo superando substância: o fio condutor de 1917 é a camaradagem no campo de batalha, a busca pela família, o ímpeto em enfrentar o impossível para cumprir seu papel como soldado. No caso, dois soldados que, no coração da Primeira Guerra Mundial, precisam atravessar território inimigo e entregar uma mensagem para impedir a ação de um batalhão, impedindo a morte de 1600 homens – inclusive o irmão de um dos soldados. Se a estrutura parece o habitual "homens com uma missão", a execução é um verdadeiro pesadelo bélico, com a decisão de Mendes em criar sua narrativa com a ilusão de um plano sequência, uma única tomada sem cortes acompanhando os dois soldados – os excepcionais Dean-Charles Chapman e George MacKay – como se estivéssemos ali, com eles, no mesmo fôlego, nos mesmos terrenos, sob o mesmo tiroteio, no mesmo inferno que é a guerra. A história pode parecer uma reprise, mas a tecnologia é única (a fotografia de Roger Deakins é uma obra de arte) e a conexão humana é emocionante e inevitável. Ah, 1917 PRECISA ser visto na melhor tela com o melhor som. Acredite, você vai me agradecer. Estreia em 23 de janeiro
4. FORD V FERRARI
(James Mangold)
Ford v Ferrari é um filme sobre a percepção da imagem. Historicamente, é sobre como a Ford percebeu que não precisava apenas vender um automóvel, e sim um desejo. Nas mãos do diretor James Mangold, essa fatia de história contemporânea foi a faísca para criar um filmaço sobre amizade (aquelas de verdade, que não sobrevive sem o eventual dedo no olho), sobre coragem e, claro, sobre velocidade. Existe um prazer cinematográfico irresistível em ver personagens movidos por pura obstinação em desafiar seus próprios limites, e o cinemão já entregou clássicos absolutos que circulam esse tema, como Os Eleitos, Mestre dos Mares ou o solitário Até o Fim. O eixo narrativo aqui é o elo entre dois pilotos, o americano Carroll Shelby (Matt Damon) e o inglês Ken Miles (Christian Bale). Quando o primeiro é encarregado de construir um carro capaz de vencer as míticas 24 horas de Le Mans, e convoca o segundo como piloto de testes e de fato, a energia em cena é palpável, com os dois astros emprestando seu peso a uma história que é maior que a deles. O sucesso de Ford v Ferrari mostra que ainda há espaço para filmes assim, à moda antiga, em que o cinema torna-se palco perfeito para explorar a condição humana em histórias extraordinárias. É também o melhor filme de James Mangold – o que não é pouco para o sujeito responsável por Logan. Eu falei mais sobre Ford v Ferrari aqui.
3. O IRLANDÊS
(The Irishman, Martin Scorsese)
A volta de Martin Scorsese ao terreno familiar do crime organizado americano é testamento da genialidade de um mestre que ajudou a pavimentar os caminhos do cinema moderno. O Irlandês começou como um sonho – colocar em cena Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci – e foi além, tornando-se o projeto que estreitou o abismo entre o cinema "tradicional" e a modernidade trazida pela Netflix. A plataforma de streaming pagou a conta de 165 milhões de dólares para Scorsese tirar O Irlandês do papel quando os estúdios lhe fecharam as portas. Ficou claro que a Netflix queria seu prestígio, e em troca bancou um filme que esticou os limites da tecnologia ao rejuvenescer seu elenco em uma narrativa que se estende por décadas, resumida em um épico de três horas e meia. Entre efeitos digitais e a revolução do streaming, o que mais importa aqui é a história, uma radiografia da estrutura do poder na América do pós-Guerra, materializana na biografia do gângster Frank Sheeran (De Niro), da disputa por território em uma Nova York dominada pelo crime até o assassinato do poderoso sindicalista Jimmy Hoffa (Pacino), uma das figuras políticas mais importantes do século 20. Scorsese não tem pressa em navegar pela vida de seus personagens e pelo modo como eles se entrelaçam, em um filme que avança em crescendo até uma meia hora final sublime. Quando um mestre trabalha, não poderia ser diferente. Eu falei mais sobre O Irlandês aqui. Já disponível na Netflix
2. ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD
(Once Upon a Time in Hollywood, Quentin Tarantino)
Cinema é paixão, e não existe cineasta mais apaixonado por seu ofício do que Quentin Tarantino. Ao se aproximar de um já anunciado fim de carreira, ele volta suas lentes para casa. Mais especificamente para Los Angeles, em um período de transição e mudança na balança do poder em Hollywood, quando astros de TV perdiam o brilho e o cinema parecia pertencer a autores ousados e modernos. É nesse cenário que Tarantino apresenta o ator Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), ex-protagonista de uma série de sucesso, relegado agora a papeis coadjuvantes para uma nova geração de astros. Quem entende melhor a mecânica dos bastidores é seu dublê, Cliff Booth (Brad Pitt), que enxerga o cinema não como sonho, mas como ganha-pão, entendendo seu lugar nessa estrutura. Tarantino costura suas rotinas com o símbolo dessa "nova" Hollywood, a atriz Sharon Tate (Margot Robbie): casada com o diretor mais quente da cidade, Roman Polanski, cercada de amigos em sintonia com o choque da contracultura e, nos conta a história, marcada pela maior tragédia que a "Cidade dos Sonhos" já presenciou. Tarantino construiu um filme em tom de fábula, explorando os cantos mais sombrios de Los Angeles e reescrevendo a história. Como resultado, Era Uma Vez em Hollywood surge como seu melhor filme: o mais maduro, mais bem dirigido, de visão mais clara, sem gordura, direto ao ponto. Empolgante, emocionante e espetacular – é pedir demais que o mundo de Tarantino seja esse, o nosso, do lado de cá? Eu escrevi mais sobre Era Uma Vez em Hollywood aqui. Ainda bati um papo com Tarantino aqui, e com Brad Pitt aqui.
1. PARASITA
(Parasite, Bong Joon-Ho)
Parasita é um filme de grandes temas e ideias profundas executado com tanta elegância e precisão que é impossível não prestar atenção. Muita atenção. Porque Parasita trata de temas universais, como a profunda desigualdade que divide pessoas em castas, e os insere em uma histórias de várias camadas que jamais entram em choque. Na superfície é um filme sobre uma família de golpistas que aos poucos se faz indispensável a outra família, de classe alta, que não percebe a teia intrincada sendo tecida em seu próprio lar. A casa, cenário principal, surge como mais um personagem com suas próprias camadas, com os andares de cima reservados para os donos do dinheiro, as áreas comuns em que trafegam os empregados, e uma camada ainda mais inferior, que é onde Parasita revela ainda mais uma de suas facetas. A partir daí o coreano Bong Joon-Ho desenvolve o filme perfeito, que desafia gêneros e convenções, e arrasta a plateia consigo para uma experiência que pode ser um espelho, não importa quem esteja assistindo. De alguma forma, em algum momento, Parasita vai envolver você também – e, acredite, não vai abandonar seu sistema. Cinema é entretenimento. Cinema é reflexão. Cinema é política. E Bong Joon-Ho construiu aqui cinema em sua melhor forma. E é por isso que ele é não só o melhor filme de 2019, mas também um dos melhores da década. Eu falei mais sobre Parasita aqui.
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